domingo, 25 de novembro de 2012

Horizontes da memória


“Porque é frágil a memória dos homens e, para que com o tempo, não caiam no esquecimento os feitos dos mortais, nasceu o remédio da escrita, para que, por meio dele, os factos passados se conservem como presentes para o futuro.” In Arenga de 1260 (Viseu, arquivo do museu Grão Vasco, PERG/08).

100 anos separam a data de nascimento da minha Avó materna (1906), da data de falecimento da minha Mãe (2005).

Parecem longos estes 100 anos, uma imensidão de tempo que se esbate nos confins da memória, sobretudo quando realizamos que dentro deles couberam 5 gerações de mulheres da mesma família: a da minha Bisavó, da minha Avó, da minha Mãe, a minha e da minha filha de 24 anos. Desta sequência de vidas interligadas pelo sangue, 3 delas, a mais velha e as 2 mais novas nunca se conheceram. Da trisavó e da bisavó, a minha filha só conhece as fotografias penduradas na parede ao fundo da sala, e dos seus nomes, Germana e Esther, tem dificuldade em lembrar-se! São-nos tão próximas, e porém, é já tão ténue a memória das suas existências!

Cabe-me a mim essa tarefa, que levo a cabo com prazer, de refazer os passos dos caminhos percorridos pelos meus "egrégios avós", ao longo da sua passagem tão efémera quanto pródiga por este mundo. Tenho um especial carinho pelas bravas mulheres da família, nomeadamente pela da minha bisavó de quem sempre ouvi falar - senhora augusta, mãe de 8 filhos, totalmente dedicada ao marido, oficial superior do Exército Português, que acompanhou sempre pelos caminhos do exílio entre 1926 e 1940, por S. Tomé, Madeira e Cabo Verde. 

Em miúda fascinava-me ouvir as histórias da família, contadas pela minha Avó e minha Mãe, quando se juntavam em tardes de amena cavaqueira. Ficava horas esquecida a ouvi-las falar de familiares distantes que eu nunca tinha visto, de lugares e ambientes que me pareciam absolutamente fantásticos, como Cabo Verde, Moçambique, da Metrópole/Lisboa e do Brasil, porque ficavam longe, muito longe, e porque essas narrativas se referiam a cenas ou acontecimentos que se tinham passado muito antes de eu nascer.

Para estas duas senhoras, a família importava mais que tudo o resto e, mesmo quando tios e primos eram afastados, em 5º ou 6º grau, eram sempre parentes próximos. Estando a família espalhada pelos quatro cantos do império Português, a saudade dos entes queridos era ainda mais marcada pelas enormes distâncias, em que a ausência se traduzia quantas vezes em vários anos. Falar da família era mais do que relembrá-la, era um exercício de reaproximação que atenuava as saudades, e de renovação dos laços que os uniam.   

Boas conversadoras e melhores contadoras de histórias, mãe e filha entravam entusiasmadas nesse reino maravilhoso das histórias da família e, à desgarrada, iam saltando de cena em cena, num ritmo desenfreado de palavras coloridas e risos frescos, como duas adolescentes empolgadas pela troca de confidências engraçadas e inconsequentes. Os episódios sucediam-se em catadupa, qual meada sem fim, de “lembras-te da Mariazinha e daquele jantar em casa da…e da Clotilde, gorducha e desajeitada no aniversário do…, e do Fernando com a mania de espetar os dedos nos bolos, só para irritar a Tia Maria”…

Sentia-me a viver num filme, tendo o privilégio de assistir à realização do mesmo. Personagens exóticos desfilavam perante os meus olhos de criança, imaginava-lhes os rostos, as roupas, adivinhava-lhes os gestos, ouvia-lhes as vozes, percebia as tramas das suas vidas, apenas pelo poder das palavras ditas por aquelas duas mulheres, que teimavam em não deixar esquecer quem mais amavam. Era mágico!

Ouvia-as calada, embasbacada, maravilhada, e só interrompia o meu silêncio quando, por breves momentos, paravam a conversa para retomarem o fôlego. Invariavelmente, suplicava-lhes ansiosa, “e mais, Mãe, conte mais!”

Hoje, esses momentos deliciosos de êxtase narrativo têm um valor inestimável por várias razões: porque são um património valioso da memória da minha infância feliz passada em Angola, porque foi através delas que aprendi a dar valor à família, a estimar os antepassados, a querer preservar as nossas raízes, dando sentido à vida dos que já cá não estão.

Ambas já partiram, e como não posso, infelizmente, contar mais com a presença destas duas mulheres maravilhosas, sinto-me feliz pelo privilégio de ter feito parte das suas vidas, e por ser o seu legado, que transmito, com prazer, à minha filha. 
 
Ao preservar a memória dos meus antepassados, tento transmitir à minha filha e aos meus sobrinhos uma identidade familiar, na esperança de que ao alargar-lhes os horizontes através destas memórias, retirem ensinamentos positivos que lhes sirvam para a sua vida futura. Falar-lhes da família e de quem mais amamos tem cada vez maior importância, sobretudo numa época tão conturbada em que se diluem as certezas mais arreigadas do presente, e o futuro se afigura tão opaco e complicado. Ao passarmos o testemunho aos nossos filhos, certifiquemo-nos que sabem que a família é a razão de sermos, é berço, é apoio, é o primeiro e o último reduto, e por isso, não pode cair no esquecimento!
 

Só existimos enquanto vivermos na memória de alguém e enquanto esse alguém falar de nós.



Ilha do Fogo, Cabo Verde, Outubro de 1935: Bisavô Fernando Freiria, Avô Gil Sacramento Monteiro, Avó Esther com a minha Mãe, Marta, ao colo e Bisavó Germana.  

 

 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Quem somos ou "The bigger picture"

Quando olho para o meu percurso de vida e me pergunto “Quem sou realmente”, irrita-me que a resposta derive, quase sempre, para o que fiz / faço em termos profissionais.
Sermos aquilo que fazemos, implica que nos reconheçam, infalivelmente, como bem ou mal sucedidos. De preferência, BEM SUCEDIDOS, caso contrário passamos a "não entidades", e não há Curriculum Vitae que nos valha.
Se reduzimos o Ser áquilo que fazemos profissionalmente, ficamos presos a um Conteúdo que nos limita a Forma. Ironicamente, é o monge que faz o hábito, e não o inverso, e pouca folga nos é deixada para podermos mudar rapidamente!
Então o que acontece quando, por força das circunstâncias, deixamos de fazer o que fizemos durante anos, e somos mesmo obrigados a mudar?
Simples! A FORMA QUE NOS ENFORMA, DESFORMATA!
Agostinho da Silva dizia, criticamente, que tanto nos esforçamos pela especialização que perdemos a capacidade de fazermos muitas coisas diferentes, e, como resultado, perdemos progressivamente a visão de conjunto do que somos: diversos, múltiplos em recursos, criativos, contradictórios.
Resumindo, a especialização, sobretudo profissional, faz-nos perder o norte ou, se preferirmos, a noção de conjunto, “the Bigger Picture”, porque nos focámos demasiado tempo no mesmo ponto.
Aproveitando então as circunstâncias, há que mudar o rumo do percurso e assumir a mudança como necessária, vital, como factor de sobrevivência. Fácil dizer! Porém porque me é tão difícil reorientar-me, melhor, reprogramar-me?
Admiro quem se reinventa constantemente, quem se livra rapidamente da pele antiga e veste a nova, qual camaleão em total sintonia com o meio que o rodeia. Admiro a capacidade de desapego, a adesão fácil a novos paradigmas e novos ritmos, sem crises de identidade, sem dor ou receio.
Parece-me que caí na conversa frouxa de "velho do Restelo", de "cota" que resiste à mudança, porque esta implica sair da sua zona de conforto! É mais fácil carpir e chover no molhado do que virar a esquina de vez! Mas não é o caso. Disparo em várias direcções, numa procura incansável e solitária de um novo rumo. Dou comigo amiúde em becos sem saída e muitas vezes, quase por vício ou por necessidade de falsa segurança, ainda tento o rumo antigo.
A incerteza domina-me de novo: Quem sou? Do caminho pela frente a percorrer, pergunto-me: para onde vou então?
“ Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas – que já têm a forma do nosso corpo – e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares… É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos.” (Fernando Pessoa)