sábado, 8 de dezembro de 2012

Os condenados de Shawshank

 
A institucionalização do desalento


Revi, talvez pela 5ª vez, Os condenados de Shawshank, um filme absolutamente notável, cujo argumento de Stephen King é magistralmente representado por Morgan Freeman e Tim Robbins. Não pretendo fazer aqui o resumo da história, pois penso que esta é sobejamente conhecida. É-me mais importante refletir sobre a mensagem, nada simples mas extremamente humana, que mexeu comigo de forma profunda e que acredito, em tempos tão conturbados como os que atravessamos, o seu conteúdo adquire uma actualidade inegável e premente.
 
Nada deve ser mais violento, para um ser humano, do que ser confrontado com a morte eminente, seja por que razão fôr. Mas o que dizer de alguém condenado a prisão perpétua, toda uma vida de reclusão, confinado ao mesmo espaço, as mesmas rotinas dia após dia, mês após mês, até se perder a noção dos anos, do tempo?
Em ambas as situações, a do condenado à morte ou a do condenado à prisão perpétua, haverá algo de mais terrível do que a perda da ESPERANÇA?
Se há filme que aborda a condição humana nas suas várias vertentes, este é, sem dúvida um dos mais soberbos, e não sendo eminentemente violento, retrata, porém, a violência na sua forma mais crua. Mostra-nos a violência dos maus tratos físicos, sejam eles infligidos pelos guardas prisionais em práticas quotidianas de abuso de poder, sejam eles infligidos por alguns presos sobre outros, através de actos de violação e sodomia, também eles em busca de afirmação, através da suprema humilhação do outro; mostra-nos a violência dos maus tratos psicológicos, cuja dor e consequências são quantas vezes mais profundas, mais nefastas e mais imprevisíveis do que as primeiras.
Este é um filme que trata do teste dos limites do ser humano, que mostra até que ponto podemos ser reduzidos à condição mínima de dignidade, forçados a descermos ao inferno da absoluta descrença em nós próprios, e da nossa aparente incapacidade de alterarmos determinadas situações.
Red (Morgan Freeman), diz a certa altura, que no início da clausura se odeiam as paredes da prisão, após uns tempos, habituam-se e adaptam-se a elas e, por fim, acabam "institucionalizados", ao ponto de, após 40 anos de prisão, preferirem aí continuar a saírem em liberdade, porque a prisão é a única realidade que conhecem, é o mundo que dominam e onde são reconhecidos e aceites, por comparação com o mundo exterior, realidade que lhes escapou e em relacção à qual se sentem perdidos, assustados, verdadeiros outsiders.
Aqui só sobreviveu o mais forte, o que conseguiu guardar para si e alimentar uma réstia de ESPERANÇA, de SONHO, resistindo essa INSTITUCIONALIZAÇÃO.
Por comparação, assim estamos, hoje, aos milhares, dependentes de uma realidade política, económica e social que nos reduziu a prisioneiros dentro de um sistema falido, do qual descremos em absoluto mas que persistimos em seguir, por alegada falta de alternativa.
A imensa maioria deste povo a que pertenço descrê da capacidade de mudança, e como se condenado a prisão perpétua, alimenta-se de uma desesperança contante, institucionalizada por décadas de aceitação deste "status quo" que lhe tolhe os movimentos e, sobretudo, o intelecto. Alguns, poucos, continuam a demonstrar uma capacidade de resiliência que lhes permite ir mais longe, sonham com a liberdade de se reinventarem e de fazerem diferente. Ganham coragem e aventuram-se pelo desconhecido, partindo as grilhetas do convencional e da comodidade instalada, fugindo à auto-comiseração. São excepção à regra da conformidade.
Assistimos, porém, à evasão dos mais novos, uma geração de afoitos com pouco mais de 20 anos, que goza desse capital de liberdade que resulta de não carregarem o peso de um passado de vivências feitas e, que por isso, se recusam a aceitar o desalento e a rendição. Não estão comprometidos com o futuro porque ainda não agiram sobre o presente, e detêm, felizmente, essa (in)suportável arrogância de acreditarem que podem e devem fazer diferente. Nestes, a Esperança ainda não é uma palavra oca e mítica, é sim o combustível que os move adiante.
Libertos do ambiente depressivo aqui instalado, farão, provavelmente, muito diferente, algures. Motivados pela força do sonho e da esperança, realizarão em terra alheia os feitos que outros lhes permitirem, comprovando, uma vez mais que, para além do engenho e da arte que todos possuímos, o que nos move é a indizível força da vontade de vencer e de nos superarmos.
Esta tem sido a história frequente da diáspora lusitana, a de sermos capazes de ir mais além, de transcendermos o miserabilismo quotidiano aparentemente impregnado nos genes nacionais, de sermos tão bons e até melhores do que os outros, em ambientes desconhecidos, quantas vezes hostis ou nem sempre propícios.
Donde fica a pergunta: se vencemos em terra alheia, porque não o conseguimos aqui? Porque é que em casa própria e senhores de condições mais do que favoráveis, nos auto convencemos da impossibilidade de nos libertarmos do quadro desta prisão mental, que nos institucionaliza os gestos, nos vence a vontade, nos limita a liberdade de agirmos positivamente?
Alguém me ajude a encontrar respostas a estas perguntas que todos fazemos, diariamente.
A gerência agradece!
      

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Eu e os Outros: o vermelho


O Vermelho

Nunca vos aconteceu, ao observarem determinadas pessoas, perceberem que elas emitem uma determinada luz e que esta está impregnada por uma côr ou por um tom específico e predominante?

Não? Então explico melhor esta ideia. 
 

Vivo, tal como quase toda a gente, rodeada por várias pessoas que no meu quotidiano desempenham diferentes papeis, e que de alguma forma contribuem, em maior ou em menor grau, para o meu equilíbrio e bem estar. Porém, algumas há que têm o condão especial de nos marcar, de nos influenciar, e até de nos mudar, de uma forma que muitas vezes só é percebida à posteriori.

Quando penso nelas, percebo que não importa tanto assim a duração do relacionamento estabelecido, mas sobretudo a intensidade do mesmo.
Essas pessoas que deixam ou deixaram uma marca indelével na minha vida, são lidas através dessa côr predominante por mim percebida. Óbviamente esta minha avaliação é uma leitura subjectiva do outro, e a intenção, não é qualificá-las como melhores ou piores umas em relacção às outras. A descodificação do outro pela côr, só me ajuda, no fundo, a perceber-me melhor.

Nesta lógica muito própria, há "pessoas vermelhas", "pessoas azuis", "pessoas douradas" e até "pessoas beges", e a cada uma corresponde, uma propriedade de carácter: umas são "encandeantes"; outras são "iluminadas"; outras são "luminosas" e ainda há as que são, supostamente, "apagadinhas".     

Hoje, destaco as "pessoas vermelhas" pela força que a sua presença exerce na minha vida, e porque aparentemente as atraio!. No rol das minhas relacões mais próximas são predominantes e incontornáveis pela influência que sobre mim exercem, e representam o extremo desta minha escala de cores.

Estas "pessoas vermelhas" são donas de uma personalidade fortíssima, têm uma natureza dominadora e delas emana uma luz intensa, de tal forma, que quando estão presentes numa sala ofuscam todas as outras. De convicções inabaláveis e vontade férrea, acreditam que as suas razões devem, evidentemente, prevalecer, e sobrepor-se às dos outros.

Prescientes e muito inteligentes, são quase sempre voluntariosas, dinâmicas e extremamente criativas. São pessoas que fazem as coisas acontecer, empurram o mundo com a força da sua vontade e mudam-no, porque ousam o impensavel. Lutam sem descanso por aquilo em que acreditam, e têm a desarmante capacidade de transformar a adversidade em oportunidades.

Normalmente são líderes e "comerciais de gabarito", porque senhoras de um imenso poder de convencimento e de sedução. Conscientes disso mesmo, usam a sua luz ofuscante para atrair os incautos que se deixam "enfeitiçar" pelo tremendo sex-appeal que emana desse perfume inebriante que o poder confere!

Tudo nelas parece acontecer com facilidade, como que por magia. Óbviamente estas pessoas são "encandeantes"!

Mas nem tudo são vantagens nesta côr! As pessoas vermelhas são normalmente muito absorventes, fruto da constante necessidade de protagonismo, de terem que ser sempre as raínhas da festa, e como adoram ouvir-se, quando falam, mais ninguém pode falar. Têm a sensibilidade à flôr da pele, e quando postas em causa, fervem em pouca água, dando azo a pequenos conflitos porque, sob pressão, dizem o que lhes dá na telha, sem medirem as consequências. Depois arrependem-se, mas já o caldo entornou!

São muito pouco pacientes para com "os menos dotados criativamente", e quando "chefes", saiem-se com pequenas pérolas como esta, "não te pago para pensares, mas sim para executares..."

São pessoas fabulosas, positivas, transbordantes de vida, que admiro e adoro, mas confesso, que muitas vezes, a sua constante agitação é enervante, e estar muito tempo perto delas é extenuante!

Há que fazer pausas nestes relacionamentos para que possam ser duradouros. Se o convívio com elas tiver que ser diário, a atitude mais inteligente, e quantas vezes a única solução, reside em relativizar a importância das suas opiniões, atitudes e decisões, minimizando assim o impacto das mesmas.
Be cool to be happy!

domingo, 25 de novembro de 2012

Horizontes da memória


“Porque é frágil a memória dos homens e, para que com o tempo, não caiam no esquecimento os feitos dos mortais, nasceu o remédio da escrita, para que, por meio dele, os factos passados se conservem como presentes para o futuro.” In Arenga de 1260 (Viseu, arquivo do museu Grão Vasco, PERG/08).

100 anos separam a data de nascimento da minha Avó materna (1906), da data de falecimento da minha Mãe (2005).

Parecem longos estes 100 anos, uma imensidão de tempo que se esbate nos confins da memória, sobretudo quando realizamos que dentro deles couberam 5 gerações de mulheres da mesma família: a da minha Bisavó, da minha Avó, da minha Mãe, a minha e da minha filha de 24 anos. Desta sequência de vidas interligadas pelo sangue, 3 delas, a mais velha e as 2 mais novas nunca se conheceram. Da trisavó e da bisavó, a minha filha só conhece as fotografias penduradas na parede ao fundo da sala, e dos seus nomes, Germana e Esther, tem dificuldade em lembrar-se! São-nos tão próximas, e porém, é já tão ténue a memória das suas existências!

Cabe-me a mim essa tarefa, que levo a cabo com prazer, de refazer os passos dos caminhos percorridos pelos meus "egrégios avós", ao longo da sua passagem tão efémera quanto pródiga por este mundo. Tenho um especial carinho pelas bravas mulheres da família, nomeadamente pela da minha bisavó de quem sempre ouvi falar - senhora augusta, mãe de 8 filhos, totalmente dedicada ao marido, oficial superior do Exército Português, que acompanhou sempre pelos caminhos do exílio entre 1926 e 1940, por S. Tomé, Madeira e Cabo Verde. 

Em miúda fascinava-me ouvir as histórias da família, contadas pela minha Avó e minha Mãe, quando se juntavam em tardes de amena cavaqueira. Ficava horas esquecida a ouvi-las falar de familiares distantes que eu nunca tinha visto, de lugares e ambientes que me pareciam absolutamente fantásticos, como Cabo Verde, Moçambique, da Metrópole/Lisboa e do Brasil, porque ficavam longe, muito longe, e porque essas narrativas se referiam a cenas ou acontecimentos que se tinham passado muito antes de eu nascer.

Para estas duas senhoras, a família importava mais que tudo o resto e, mesmo quando tios e primos eram afastados, em 5º ou 6º grau, eram sempre parentes próximos. Estando a família espalhada pelos quatro cantos do império Português, a saudade dos entes queridos era ainda mais marcada pelas enormes distâncias, em que a ausência se traduzia quantas vezes em vários anos. Falar da família era mais do que relembrá-la, era um exercício de reaproximação que atenuava as saudades, e de renovação dos laços que os uniam.   

Boas conversadoras e melhores contadoras de histórias, mãe e filha entravam entusiasmadas nesse reino maravilhoso das histórias da família e, à desgarrada, iam saltando de cena em cena, num ritmo desenfreado de palavras coloridas e risos frescos, como duas adolescentes empolgadas pela troca de confidências engraçadas e inconsequentes. Os episódios sucediam-se em catadupa, qual meada sem fim, de “lembras-te da Mariazinha e daquele jantar em casa da…e da Clotilde, gorducha e desajeitada no aniversário do…, e do Fernando com a mania de espetar os dedos nos bolos, só para irritar a Tia Maria”…

Sentia-me a viver num filme, tendo o privilégio de assistir à realização do mesmo. Personagens exóticos desfilavam perante os meus olhos de criança, imaginava-lhes os rostos, as roupas, adivinhava-lhes os gestos, ouvia-lhes as vozes, percebia as tramas das suas vidas, apenas pelo poder das palavras ditas por aquelas duas mulheres, que teimavam em não deixar esquecer quem mais amavam. Era mágico!

Ouvia-as calada, embasbacada, maravilhada, e só interrompia o meu silêncio quando, por breves momentos, paravam a conversa para retomarem o fôlego. Invariavelmente, suplicava-lhes ansiosa, “e mais, Mãe, conte mais!”

Hoje, esses momentos deliciosos de êxtase narrativo têm um valor inestimável por várias razões: porque são um património valioso da memória da minha infância feliz passada em Angola, porque foi através delas que aprendi a dar valor à família, a estimar os antepassados, a querer preservar as nossas raízes, dando sentido à vida dos que já cá não estão.

Ambas já partiram, e como não posso, infelizmente, contar mais com a presença destas duas mulheres maravilhosas, sinto-me feliz pelo privilégio de ter feito parte das suas vidas, e por ser o seu legado, que transmito, com prazer, à minha filha. 
 
Ao preservar a memória dos meus antepassados, tento transmitir à minha filha e aos meus sobrinhos uma identidade familiar, na esperança de que ao alargar-lhes os horizontes através destas memórias, retirem ensinamentos positivos que lhes sirvam para a sua vida futura. Falar-lhes da família e de quem mais amamos tem cada vez maior importância, sobretudo numa época tão conturbada em que se diluem as certezas mais arreigadas do presente, e o futuro se afigura tão opaco e complicado. Ao passarmos o testemunho aos nossos filhos, certifiquemo-nos que sabem que a família é a razão de sermos, é berço, é apoio, é o primeiro e o último reduto, e por isso, não pode cair no esquecimento!
 

Só existimos enquanto vivermos na memória de alguém e enquanto esse alguém falar de nós.



Ilha do Fogo, Cabo Verde, Outubro de 1935: Bisavô Fernando Freiria, Avô Gil Sacramento Monteiro, Avó Esther com a minha Mãe, Marta, ao colo e Bisavó Germana.  

 

 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Quem somos ou "The bigger picture"

Quando olho para o meu percurso de vida e me pergunto “Quem sou realmente”, irrita-me que a resposta derive, quase sempre, para o que fiz / faço em termos profissionais.
Sermos aquilo que fazemos, implica que nos reconheçam, infalivelmente, como bem ou mal sucedidos. De preferência, BEM SUCEDIDOS, caso contrário passamos a "não entidades", e não há Curriculum Vitae que nos valha.
Se reduzimos o Ser áquilo que fazemos profissionalmente, ficamos presos a um Conteúdo que nos limita a Forma. Ironicamente, é o monge que faz o hábito, e não o inverso, e pouca folga nos é deixada para podermos mudar rapidamente!
Então o que acontece quando, por força das circunstâncias, deixamos de fazer o que fizemos durante anos, e somos mesmo obrigados a mudar?
Simples! A FORMA QUE NOS ENFORMA, DESFORMATA!
Agostinho da Silva dizia, criticamente, que tanto nos esforçamos pela especialização que perdemos a capacidade de fazermos muitas coisas diferentes, e, como resultado, perdemos progressivamente a visão de conjunto do que somos: diversos, múltiplos em recursos, criativos, contradictórios.
Resumindo, a especialização, sobretudo profissional, faz-nos perder o norte ou, se preferirmos, a noção de conjunto, “the Bigger Picture”, porque nos focámos demasiado tempo no mesmo ponto.
Aproveitando então as circunstâncias, há que mudar o rumo do percurso e assumir a mudança como necessária, vital, como factor de sobrevivência. Fácil dizer! Porém porque me é tão difícil reorientar-me, melhor, reprogramar-me?
Admiro quem se reinventa constantemente, quem se livra rapidamente da pele antiga e veste a nova, qual camaleão em total sintonia com o meio que o rodeia. Admiro a capacidade de desapego, a adesão fácil a novos paradigmas e novos ritmos, sem crises de identidade, sem dor ou receio.
Parece-me que caí na conversa frouxa de "velho do Restelo", de "cota" que resiste à mudança, porque esta implica sair da sua zona de conforto! É mais fácil carpir e chover no molhado do que virar a esquina de vez! Mas não é o caso. Disparo em várias direcções, numa procura incansável e solitária de um novo rumo. Dou comigo amiúde em becos sem saída e muitas vezes, quase por vício ou por necessidade de falsa segurança, ainda tento o rumo antigo.
A incerteza domina-me de novo: Quem sou? Do caminho pela frente a percorrer, pergunto-me: para onde vou então?
“ Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas – que já têm a forma do nosso corpo – e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares… É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos.” (Fernando Pessoa)