segunda-feira, 17 de março de 2014

There is magic in the air!

 
Judy Garland - Over the rainbow
 
Nunca vos aconteceu, ao observarem determinadas pessoas, perceberem que elas emitem uma certa luz e que esta está impregnada por uma côr ou por um tom específico e predominante?

Não? Então explico melhor esta ideia. Vivo, tal como quase toda a gente, rodeada por várias pessoas que no meu quotidiano desempenham diferentes papeis, e que de alguma forma contribuem, em maior ou em menor grau, para o meu equilíbrio e bem estar. Porém, algumas há que têm o condão especial de nos marcar, de nos influenciar, e até de nos mudar, de uma forma que muitas vezes só é percebida à posteriori.

Quando penso nelas, percebo que não importa tanto assim a duração do relacionamento estabelecido, mas sobretudo a intensidade do mesmo. Essas pessoas que deixam ou deixaram uma marca indelével na minha vida, são lidas através dessa côr predominante por mim percebida.

Óbviamente esta minha avaliação é uma leitura subjectiva do outro, e a intenção não é qualificá-las como melhores ou piores umas em relacção às outras. A descodificação do outro pela côr só me ajuda, no fundo, a perceber-me melhor.

A magia do pássaro beija-flôr

Há pessoas raras, pessoas que emitem uma luz dourada, quase mágica. Envolve-as uma ligeira poalha que se espalha por quem com elas contacta, atraindo-as, enfeitiçando-as, marcando-as, num minuto apenas ou para sempre.

Tenho a rara sorte - estou convicta - de conhecer dois desses belíssimos seres, tão diversos entre si, e porém, tão semelhantes. Com um deles convivi intensamente numa relação de amor eterno, muito desacordo, alguma revolta e muita partilha. Com o segundo convivo menos frequentemente, numa relação mais solta e galhofeira mas desde o início lhe pressenti essa força interior, única e exclusiva e reconheci-lhe as propriedades da magia de um beija-flôr.

Estranhamente ou talvez não (?) são ambos seres do sexo feminino mas mais do que isso, são intrinseca e verdadeiramente mulheres: sensíveis e inteligentes, ora festivas e travessas como crianças sem tino; ora ponderadas e responsaveis, como adultas convictas das suas escolhas; ora frágeis, angustiadas e depressivas, como adolescentes à procura do seu caminho; ora firmes e poderosas, porque Mães, que se afirmam como rochas inamovíveis perante filhos em crescimento turbulento; ora envolventes e sensuais, emanando o perfume quente da sua sexualidade subliminar, amantes fieis daqueles que elegeram como príncipes únicos e (con)sortes, por partilharem das suas vidas.

São contraditórias só na aparência porque consistentemente coerentes nos actos que praticam, e se por vezes são algo excessivas na defesa das suas convicções, não perdem nem o Norte nem a face, e acalmam os calores da refrega com uma piada ou uma gargalhada.  Têm um forte sentido de proteção da família e dos amigos mas têm horror ao protecionismo chatinho, ao abracinho queriduxo e ternurentuzinho e odeiam  meninos abafadinhos e cheios de birrinhas. Saiam de perto se virem uma sobrancelha arqueada e um sorrisinho mordaz ao cantinho da boca! 

Surpreende-me sempre o seu sentido de justiça e o tentarem manter-se como fieis de balança, apaziguadoras, pacificadoras de ambientes turbulentos, tantas vezes calando fundo as suas dores em prol da paz comum. Desengane-se porém quem as tome por pacifistas ou dóceis, porque não o são. Não há falinhas mansas nem cantigas do "bandido" que as embalem facilmente, porque a esse, já o toparam há muito, com a ajuda de um verdadeiro radar ultrasensível: um sexto sentido premonitório, a raiar o dramático, quase perigoso...  

São companheiras divertidas, senhoras de um sentido de humor fino e apurado com quem é um prazer conviver. Adoram festas e sobretudo máscaras de carnaval, onde exercitam toda a sua criatividade e se travestem de personagens mirabolantes, recriando tiques alheios, capazes de darem fôlego a caricaturas muito diversas e o mais opostas de si próprias. No quotidiano, porém, são algo reservadas e odeiam dar nas vistas! Vá-se lá perceber estas alminhas!!!

Estes seres são, obviamente, imperfeitos, e conscientes disso, não aspiram a uma grama de santidade, pelo contrário, as criaturas não se levam muito a sério, porque a vida é tão curta! Têm um sentido de humor apurado, irreverente, desarmante, quase enervante, e no entanto, são seriíssímas quando assumem compromissos de alma e coração, e sem os apregoarem, levam-nos a cabo sem contemplações!
 
Praticam o bem e exercem a sua generosidade de forma natural e sem alarde, junto de todos aqueles que elegem como protegidos - e são vários - sem esperarem por reconhecimento ou recompensa, apenas porque a sua consciência de seres humanos e de cristãs assim o dita.

Não são vulgares estas duas "pestinhas", longe disso, antes absolutamente especiais, admiraveis, indispensaveis na minha vida.
 
A primeira delas deixou-me, como herança, a sua marca na alma e nos genes. Para sempre! Mais de quarenta anos passados e com tanto mundo revirado, o que guardo é o seu riso fresco e solto, gargalhadas contagiantes que ecoam vivas na memória da infância, tempo mágico e frágil que preservo íntegro, incólume, das agruras do tempo gasto.
 
A segunda dá-me o privilégio da AMIZADE e da CONFIANÇA!
 
A ambas, deixo-lhes aqui o meu obrigada e um pedido:
 
enfernizem-me a vida MAS POUCO!
 
 

domingo, 2 de março de 2014

Flashes de um país raro e cheio de "tesourinhos deprimentes".


"Minha cara amiga, como tens passado? Querias notícias minhas e aqui vão.

Eu, João, profissional de marketing desempregado e actual dono de casa efectivo, deixo-te aqui o meu testemunho de participante numa experiência enriquecedora e inolvidável.

Há cerca de 15 dias iniciei um curso de formação, de caracter obrigatório, proporcionado pelo Centro de Emprego da região. Saí de casa pela fresquinha, sentindo na cara o friozinho cortante daquela manhã de inverno e fui apresentar-me no centro de formação.

Senti-me estranhamente satisfeito por sair de casa à hora a que tantos outros saem para o trabalho, tal como o fiz durante anos. A formação seria a partir dali o meu trabalho, e lá fui entusiasmado apresentar-me: 9 horas, sharp!

Comigo estavam outros 18 convocados(as) com idades variadas, na casa dos 40/60, todos desempregados, tal como eu. Fomo-nos sentando ordeiramente e em silêncio numa sala disposta em U, e quais alunos atinados e obedientes no seu 1º dia de escola, espiávamos desconfiados os parceiros pelo canto do olho enquanto aguardávamos pelo formador.

A receber-nos estava um indivíduo vestido com uma bata branca imaculada, o que me confundiu inicialmente - homem do talho não podia ser, estava demasiado limpo, parecia mais o tipo da farmácia ou até o enfermeiro do Centro de Saúde.

Ao fim de uns minutos e depois de distribuir impressos a cada um, apresentou-se como sendo o formador, que nos acompanharia ao longo de 150 horas, o equivalente a quase dois meses de aulas diárias, das 9h às 14h. De rajada, foi dizendo que o curso tinha como objectivo dotar os formandos de Competências Informáticas Básicas e que…

GELEI AGONIADO! Devia ter ouvido mal, só podia! Eu estava inscrito para um curso de Competências Informáticas Avançadas e produção de sites!!!

O trabalho escraviza...

Em segundos estava instalado o granel, com todos a falarem ao mesmo tempo, num bruuuaaaa ensurdecedor que se agravou quando o enfermeiro, perdão, o formador, caiu na asneira de perguntar: "alguém aqui tem alguma objeção em participar neste curso?" No segundo seguinte o pessoal da pesada arranjou logo motivo para a balda, cada qual mais hilariante que o anterior.

Eu, ainda mal refeito da surpresa, resisti a juntar-me ao coro de protestos, e civicamente abstive-me de qualquer comentário, mas pensei com os meus botões que ou o tipo era parvo de todo ou estava armado ao pingarelho.

Escusado será dizer que fiquei doutorado nos impedimentos de todos os outros, mas o mais interessante foi perceber que iria frequentar, sem apelo nem agravo, um curso para o qual não me inscrevi, e que o homem de bata branca, a quem os meus estimados colegas passaram a tratar por "setor", também não fazia ideia nenhuma porque raio estavam ali pessoas inscritas para um outro curso de formação?! "Amigos, isto é o que tem que ser, tanto para vocês como para mim e podem reclamar junto da entidade competente, mas aconselho-vos a não faltarem ao curso". E, como que para nos acalmar, SORRIU, um sorriso cândido e meigo, irresistível, que me comoveu profundamente!

Explicou então que a balda só era possível com justificação plausível, atestada por entidades competentes e credenciadas, e assim, depois de acenar com a cenoura deu com o pau na tola dos espertos, o desmancha-prazeres!

A formação liberta!

Mais divertido ainda foi observar que o grupo de formandos era composto por gente muito diversa, o que contribuiu para o enriquecimento sócio-cultural do conjunto: uns seis teriam formação média ou superior, outros tantos teriam a 4ª classe ou pouco mais, e os restantes mal sabiam ler e escrever, donde, conseguir que todos preenchessem uma simples folha com os dados pessoais, revelou-se uma tarefa árdua; havia também quem visse mal, como a minha companheira do lado que não imaginava que o seu cartão de cidadão contivesse dados diversos e não apenas o nº do BI, e que para além disso, de tão boazinha tinha emprestado a caneta ao vizinho do lado o que a impedia de preencher efectivamente o impresso, e numa voz maviosa, voltou-se para apelar à minha aparente generosidade: "já agora vizinho, preencha o meu impresso também, porque estou sem caneta, não percebo nada disto e vejo mal..."

Querida amiga, lembrei-me tanto de ti, porque a veia do pescoço inchou, quente de enervamento, espanto e falta de paciência. Pensei "isto não me está a acontecer" e contendo a minha fúria disse-lhe: oiça, eu ajudo-a a preencher o impresso mas será melhor pedir de volta a sua caneta, e talvez pondo os óculos já consiga ler, certo?

Claro que a minha vizinha não me achou graça nenhuma e soltou, num suspiro profundo, a frase que mais me animou: "estamos aqui para sermos uns para os outros e eu não percebo nada disto mas já vi que o menino percebe!" PRONTOS, com esta arrumou comigo, porque a fulana devia ter quase a mesma idade que eu, mas achou que eu tinha ar de menino, e o meu ego exultou de felicidade.

Tudo boa gente.

Escusado será dizer que obviamente havia vários indivíduos para quem a vida é madrasta, entre os quais um desgraçado que vive com 180 euros mensais de apoio social, 60 anos ou mais, coxo mas sem papas na língua, que tirou partido da verve e da lata de "pintas marialva" e monopolizou a cena de princípio ao fim, contando a sua história desde tenra infância até aos dias de hoje, sempre com apartes e sempre na 1ª pessoa - Eu isto, eu aquilo, e isto é uma grande porcaria. "Tou inscrito há canos e agora que não me dá jeitinho nenhum, chamam-me para aprender coisas que não me servem para nada. Sim, tenho portátel mas não funciona e vou trazê-lo para o setôr ver que raio o bicho tem..." Pérolas, verdadeiras pérolas!

Os despojos do dia...

Portanto, absorvo diariamente ensinamentos vários com o objectivo de me formar sobre uma matéria para a qual não tenho o mínimo interesse porque domino, e partilho com os meus colegas da vida airada experiências preciosas, que tal como eles, não percebo "para que raio me servem". Hilariante!

No fim desta sessão de apresentação não pude evitar sentir-me um privilegiado em todos os aspectos. Faço parte de uma pequena elite de uns milhares, cujos pais nos deram a chance de irmos mais longe: estudámos, viajámos, trabalhámos em empresas e participámos em projectos que nos proporcionaram experiências diversas, alargando-nos os horizontes.

Senti que vivo num mundo aparte do qual a maioria deste país ficou à margem, foi excluída pela falácia da igualdade de oportunidades e pela ilusão do acesso fácil ao conforto e ao sucesso. A quimera terminou para quase todos, mas esta maioria da qual "sou vizinha" continuará a estar e a ser excluída, nas próximas décadas, do acesso a esse conforto, a esse sucesso e ao saber, a que têm tanto direito como os outros. A diferença é que, apesar do confronto diário com essa realidade abrupta, os seus protestos de nada lhes servem, tal como de pouco nos serve o curso de formação, inútil porque desajustado, mas que iremos concluir com sucesso e louvor, exibindo orgulhosos o respectivo certificado, que atestará, sobretudo, a nossa infinitamente estúpida capacidade de aceitação de tudo o que não nos interessa.

À saída, eu, João, profissional de marketing desempregado, olhei à minha volta e engoli o enjôo: de nada me servira o saber e experiência acumulados porque era tão náufrago quanto os outros, e estava igualmente ávido de uma tábua de salvação a que me agarrar com unhas e dentes, na esperança de ainda poder safar-me e chegar a bom porto.

Fechei os olhos por segundos e imaginei-me noutro lugar, tentando esquecer a profunda tristeza que me invadira ao deparar-me com este "tesourinho deprimente", um pequenino retrato do pobre país que somos após 40 anos de democracia, pelo qual TODOS SOMOS RESPONSAVEIS.

Quanto ao curso, tenho ainda a esperança de poder aprender alguma coisa, seja o que for.

Haja saúde.

Até breve."