sábado, 7 de dezembro de 2013

Escrevo, logo existo!


Escrever, é soltar as palavras, como quem solta cavalos selvagens que partem num galope desenfreado por vales de liberdade.




Escrevo desde que me lembro, sem tema fixo nem hora marcada, palavras que se agitam diante dos meus olhos, numa rebeldia mansa, que saltam de assunto em assunto, correm desenfreadas levando tudo à frente, num crescendo que marca o tempo com o seu ritmo descompassado.

Em criança fiz das palavras os meus brinquedos favoritos, berlindes furta-cores que rolava entre os dedos com mestria, chocolates irresistíveis com que me lambuzava num vício sem pecado e apenas me engordavam o verbo. Na juventude li tudo o que pude e aprendi que as palavras têm cores e, que tal como as cerejas, dão sabor à vida. Devorava-as num prazer guloso, umas atrás das outras, sem parar, vermelhas, redondas, lustrosas, intensas, ora doces, ora amargas, às vezes enjoativas, mas nunca indiferentes!

Como adulta destaco a escrita como algo que me define, parte intrínseca da minha natureza. Sou o que escrevo enquanto pessoa, e escrevo quem sou enquanto parte da Humanidade, porque me descubro, me reinvento e me transformo através desta dualidade, só na aparência contraditória. 

Saber escrever tem sido a minha meta, a “última dimensão” a alcançar. Escrever bem é dominar as palavras com à vontade, é fazer delas o que quero, ferramentas de bricolage com que construo cenários de fantasia, é calçar sapatinhos de bailarina que rodopiam em pontas, ao ritmo incessante do Bolero de Ravel, são pincéis, com que registo em tons fauve impressões de vida, pintando quadros vibrantes onde reencontro Van Gogh e Gauguin, em amena conversa no Terraço do Café à Noite.

Ser o que escrevo é soltar a avalanche de palavras que me arrebatam o fôlego, como quem solta cavalos selvagens, presos em cercas, que anseiam por partir num galope desenfreado por vales de liberdade. É partir sem destino marcado, num eterno desejo de evasão, em busca de novas emoções, novos horizontes e novas palavras. É encontrar-me com heróis de ficção com quem partilho aventuras fantásticas, como o Marinheiro de Malta, com quem dou de caras em Veneza, segui-lo até à Sibéria e ao mar da China, e deixá-lo, finalmente, em Antígua, levando apenas na bagagem as memórias preciosas de Balada do Mar Salgado. Até novo encontro, desta vez com Santiago, o pescador cubano canceroso de O Velho e o Mar, que me apresenta Hemingway e Martha, que me arrastam para novas aventuras pelo mar das Caraíbas, a bordo do iate Pilar.

Escrever quem sou, é outra coisa! É olhar para o Ser Humano e ter o poder de mostrar, por palavras, tudo aquilo de que este é capaz, para o bem e para o mal. É poder mudar a vida do sem abrigo, estendo-lhe a mão e, provocar, de seguida, o desespero irreversível na adolescente violada por aquele em quem confiou; é confortar o desconsolo do amante que se descobre traído, ver o riso de contentamento no jovem a quem dei o primeiro beijo, é dar abrigo a peregrinos esgotados pelo cansaço e, em simultâneo, liquidar o meu opositor sem a mínima hesitação; é amar alguém perdidamente, sem poder dizê-lo a toda a agente, é cobiçar o bem alheio sem remorso e, em contraponto, esfarrapar-me pelo bem-estar do meu amigo, vítima de doença terminal. É ser Leonardo, o génio da escrita especular, que pôs em perspectiva ideias mirabolantes, que mudaram a percepção do mundo, para sempre; é criar duendes, fadas e bruxas, pôr os animais a falar, num universo mágico de gente pequena, onde o faz-de-conta é real; é pensar apenas nos meus interesses, virar o Norte contra o Sul, pôr o mundo em guerra e resolver o assunto, carregando num botão, enquanto sobrevôo Hiroxima, sobre a luz ofuscante do clarão, provocado pelo ínfimo eletrão.

Escrever quem sou é ignorar o extremo sofrimento alheio em cada dia, e celebrar a paz com palavras solenes, é criar a Sociedade das Nações, proclamar, alto e bom som, que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, ao mesmo tempo que estabeleço novas formas de escravatura; é desenvolver, em simultâneo, a sociedade da abundância e do desperdício, é promover campanhas gigantescas de solidariedade para os esquecidos da sorte, no deserto africano, e em todos os desertos habitados deste mundo! É caminhar, como Bono, por ruas sem nome, na eterna esperança de encontrar o que procuro.

Quem sou afinal?
Sou o que escrevo e escrevo quem sou, porque entro na pele de todas as personagens que vivem nos lugares da minha imaginação, estou em todas as paisagens nunca vistas deste mundo fantástico onde me movo, e de outros que hei-de inventar, através das palavras que ainda quero descobrir.
Porque tenho alma de escritora!

Foto retirada da página: 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Viagens - regresso às memórias do futuro.*


  Na rotina dos outros, o lugar da nossa novidade. Times Square, Abril de 2011

Férias, viagens, tempo livre para partir. Simples, não é? Planear o destino da viagem, reservar os hotéis na internet, reunir os guias turísticos, os roteiros de passeios, de lojas, restaurantes e os bilhetes de espetáculos a "não perder", sem esquecer ainda as dicas da Joana que esteve lá há 15 dias.
 
Fazer a contagem decrescente dos dias, na esperança febril de encurtar a distância que nos separa da data da partida, consultar a metereologia e, finalmente, fazer a mala, são, só por si, gestos plenos de um imenso gozo, o de vivermos por antecipação as memórias de um futuro ainda por cumprir, que iremos registar a cada passo, provas da marca da nossa passagem por locais desconhecidos, habitados por gentes ainda sem rosto, com quem haveremos de nos cruzar.
 
Eufóricos, ansiosos, expectantes, livramo-nos rapidamente e sem remorsos da velha pele que vestimos, conformados, ao longo do ano e, quais crisálidas em metamorfose acelerada, assumimos confiantes a nova pele de viajantes, borboletas airosas no momento do primeiro vôo. Leves que nem plumas ao vento, partimos, deixando para trás as rotinas do nosso quotidiano, gastas de tão usadas, em direcção a um outro ponto de chegada, fazendo da rotina de outros o lugar da nossa novidade. Estranho não é?
 
Afinal, fazer turismo envolve alguma complexidade. Queremos ter experiências novas, descobrir o que é genuíno. Na realidade, procuramos o Outro, esse eterno desconhecido, esse que é diferente de nós, mas em quem projetamos a nossa própria diferença, sempre na procura da semelhança.
 
Nada de preocupante, porque o que importa mesmo é partir! Check-in online feito, a porta da rua fechada com quatro voltas, não vá o diabo tecê-las, táxi para o aeroporto, dar uma espreitadela no Duty Free, engolir comida de plástico no avião, que já nem fingimos que é deliciosa, porque no fundo, Roma vale a missa!
 
Check-out, planta da cidade, folhetos, horários de visitas de tudo e de mais alguma coisa, de preferência sem guia, que não há paciência para o "follow me"! Calças de ganga, ténis, máquina digital, um entra e sai frenético em museus, palácios e monumentos. Pausa para um café, pantomimas de rua no Quai D'Orsay, banhos de sol de inverno num banquinho de uma praça perdida em Veneza, horizontes sem fim em praias de areias douradas e mares azul-turquesa, pistas de Ski e tanta neve...no deserto.
 
Compras, recordações, fotografias. Muitas fotografias, porque é só isso que é tangível e possível de partilhar com a família, com os amigos, connosco próprios, quando estivermos de novo em casa, e já só nos restar recordar as emoções dessa viagem. Seja ela qual for: do último verão nas Seychelles, a Nova Iorque fora de horas, ao vôo interminável para Bangkok, com o passageiro do lado que ressonava alto e dava cotoveladas, uma carteira roubada em Florença, o Fiat avariado no meio do Pantanal, o espetáculo musical do ano, perdido, em Berlim! 
 
E pronto, férias terminadas, rotina retomada, a que de repente, e por breves instantes, até achamos graça. Lar doce lar! Arrumadas as malas, acrescentamos, com carinho e nostalgia, à coleção já longa, as últimas amostras de shampoos retiradas de casas de banho de hotéis, testemunhas em miniatura de "já aqui estive" e, subitamente, reencontramos o nosso lugar de sempre, e até parecemos contentes, até trocamos sorrisos cúmplices com o vizinho que connosco se cruza na fila matinal do autocarro.
 
Mas o fim das férias e das viagens é sempre um choque difícil de absorver. Ainda mal refeitos de aterrarmos, de novo, neste planeta que é a realidade quotidiana, enchemo-nos de coragem para enfrentarmos este rame-rame de casa-trabalho-casa pelos próximos, longos, infindáveis 365 dias que nos esperam, tentando convencermo-nos que passarão depressa, ao ponto de, até o café requentado do bar da estação parecer apetecível.
 
Depois, a caminho do trabalho, damo-nos o direito a nova e breve fuga, para outra viagem. Nada de mais nostálgico e de mais delicioso que saborear, devagar e repetidamente, memórias avulsas desses momentos vividos, prolongando o gozo do visionamento desse filme interior, do qual somos, a um tempo, realizadores e actores, antecipando já momentos da próxima partida, que virá, sabe-se lá quando, talvez no próximo verão. 

Memórias de experiências únicas que adoçam o amargor que se instalará devagarinho, pouco a pouco, com o passar dos dias cada vez mais curtos, mais frios e mais tristonhos, que anunciarão mais um inverno, o do nosso descontentamento.
 
* Texto levado ao concurso "2write", publicado a 20/10/2013.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Uma estrela dourada brilha no firmamento


A minha Mãe, Mazy Sacramento Monteiro

 Desde miúda sempre me fascinou observar o céu nocturno e apreciar o brilho dos milhões de estrelas por cima de nós. Com o passar dos anos, esse gesto tornou-se quase compulsivo,  sobretudo em sítios onde a luz artificial está ausente, permitindo que o espectáculo desses seres quase eternos se manifeste em toda a sua grandeza. 

Nos últimos 20 anos, porém, sair de casa para olhar o céu estrelado tornou-se, progressivamente, num ritual absolutamente interior e solitário. Num cantinho da Serra de Grândola, lugar rude e simples que aprendi a amar, afasto-me dos outros e procuro um sítio onde possa ficar a contemplá-las em sossego. 

Algures, lá em cima no firmamento, brilham estrelas a que chamo minhas, seres especiais que me amaram e que amei, que um dia partiram sem que jamais os possa esquecer. Os meus olhos vasculham assim a imensidão prateada e negra, fixando-se num pequeno conjunto de pontos brilhantes que tremulam como pequenos flashes, de onde sobressai uma, cujo brilho dourado se destaca das outras, ofuscando-as. Por uma fracção de segundo vejo um tremor ritmado, como que um piscar de olhos, e o meu coração aperta-se cá dentro, preso daquele ténue sinal de reconhecimento. Devolvo o piscar de olhos à minha estrela maior, e dedico-lhe o meu sorriso carinhoso.

Em jovem, a minha estrela não era o que se pode dizer uma mulher bonita, mas estivesse onde estivesse, era impossível não dar pela sua presença. Conversadora nata, sabia estar com todos, adaptando na perfeição o tema da conversa aos ouvintes e à ocasião. Alegre, senhora de um sentido de humor subtil, adorava uma "piada picante" da qual se ria com gosto, e, muitas vezes, ria-se mesmo de si própria, já que era dada a distrações e a pequenos lapsos, como o de trocar frequentemente o nome de algumas pessoas, mas tinha a arte de se sair sempre bem das situações, conquistando os atingidos com tiradas simpáticas e espontâneas, que tinham o condão de os desarmar.   

A minha estrela tinha cabelo negro ondulado, "rebelde e teimoso" segundo a própria, olhos castanhos brilhantes e expressivos, boca de lábios cheios bem desenhados, que o baton vermelho destacava. Sendo mais alta do que a média das mulheres com quem se dava - a mim parecia-me sempre altíssima, ainda por cima porque usava saltos altos - tinha uma fisionomia elegante com "cinturinha de vespa" de que sabia tirar partido, vestindo peças simples mas com feitios e cores que a favoreciam, "porque tinha bom gosto".

Gostava de festas que se prolongassem pela noite fora e como boa dançarina, fazia o gosto ao pézinho e ficava feliz quando o acompanhante não tinha "pé de chumbo", como o meu Pai. Era-lhe fácil fazer amigos, mas era fiel a um "grupo duro" com quem se dava quase diariamente desde há longos anos, e com quem nunca a ouvi ter qualquer dissonância, apesar de os seus membros terem idades muito diversificadas. Os locais desse convívio intenso eram as casas uns dos outros e não era preciso ocasião especial para se encontrarem, já que havia o hábito de tomar um "drink" ao final da tarde, depois do trabalho, de sair após o jantar para tomar café e de promoverem jantares aos sábados. 

A minha estrela tinha mão para a cozinha mas era ainda melhor doceira. Fazia de tudo, desde um simples pudim de chocolate, à divina tarte de amêndoa e ovos moles, ao bolo de ananás caramelizado, fora o que inventava em cima da hora, quando as receitas não lhe saiam como queria, socorrendo-se de "pequenos truques" que começavam por disfarçar o desastre e acabavam, geralmente, por serem apresentados como "especialidades do Algarve", isto ainda antes de choverem os elogios àquela delícia! 

Eu e os meus irmãos crescemos a ouvir falar em "Charlotes, Chifons, Rocamboles, Sorvetes, Marquises e Bavaroises", divertindo-nos com os nomes "chiques" de receitas do Pantagruel e da Banquete, da Tia Anita e da Avó Esther. Sempre que havia bolo pedíamos que nos chamasse para rapar a taça, e de colheres em punho, subíamos para cima de bancos para controlarmos a quantidade de massa que sobrava, sobretudo no Bolo Mármore, nosso favorito, porque íamos comendo, à vez, um pedacinho de massa branca e outro de massa de chocolate, acabando, sempre, com a cara, o cabelo e camisola todos sujos. 

Esta minha estrela brilhante tinha a pele branca e macia, mãos lindas com longos dedos de pianista, as unhas bem tratadas e sempre impecáveis, pintadas de laranja forte ou vermelho. Nos dias de festa, andava atrás dela enquanto se vestia, se maquilhava e penteava, suspensa dos seus gestos descontraídos e da alegria que dela emanava. Pedia-me para lhe pôr o colar, e fosse ele qual fosse, "ficava-lhe sempre a matar". Aos meus olhos de criança, parecia-me sempre uma raínha, pronta a entrar em cena pela mão do seu rei. 

A minha estrela maior cativava os outros com a sua simplicidade e franqueza, sem poses estudadas e sem gestos teatrais, desarmando tudo e todos com a sua gargalhada cristalina, uma das marcas imorredoiras da sua personalidade vibrante. Saber rir com gosto era-lhe intrínseco, e o som dessa gargalhada fazia parte integrante do seu charme inesquecível.

Depois a vida mudou, e encarregou-se de lhe esmorecer a força, a energia e a alegria, fruto das perdas sucessivas que viveu. De degrau em degrau faltaram-lhe as âncoras, e desceu aos infernos: primeiro a saída definitiva da terra amada, depois a morte do Pai, seu companheiro de sempre, e numa reviravolta insuspeitável do destino, sofreu o derradeiro golpe, o choque brutal, súbito e irreparável da morte do filho mais novo, com 24 anos.

Até pouco antes do fim permaneceu estoica, sempre generosa para com os outros, esquecendo-se de si própria apesar do sofrimento físico e moral, porque na sua lógica, havia sempre alguém que sofria mais, que precisava de amparo e de uma palavra de esperança, quando para ela, toda a esperança já se fora. 

A generosidade era a faceta intrínseca e inata da minha estrela maior, essa propriedade de carácter que a tornava "luminosa" e que a fez ser admirada por familiares, amigos e colegas, criando laços que perduraram vida fora, e que ainda hoje se mantêm vivos na memória e no coração de quem teve a sorte de a conhecer.

Esta estrela brilhante que ofusca as outras é a minha Mãe. Tento seguir no encalço dos seus passos, reproduzir os seus ensinamentos, guiar-me pela sua luz, mas nunca imitá-la porque o que é genuíno não se copia.

Obrigada por tudo, minha estrela brilhante mas, sobretudo, pelo privilégio que me foi concedido por ter-te tido como Mãe.
 

quarta-feira, 20 de março de 2013

Out of África





 
Nasci em África, tal como os meus irmãos, os meus pais, tios, primos, Avô e Bisavós maternos, assim como outras gerações que nos antecederam. As raízes africanas de uma grande parte da minha família perdem-se no tempo, divididas entre Cabo-Verde, Angola, África do Sul e Moçambique.

Em final de 1975, fruto das circunstâncias políticas resultantes da Revolução de 25 de Abril de 1974, fomos confrontados com uma realidade que até então nos parecia imutável, inquestionável na sua normalidade. Fomos obrigados a deixar uma terra que considerávamos nossa, sem nos terem consultado ou dado sequer a oportunidade de tentarmos uma via alternativa. Partimos, em direcção a outra realidade, até um refúgio distante do nosso imaginário, estranho, e onde, para muitos dos residentes, nem sequer éramos bem-vindos. Portugal continental.

Foi, para todos, o recomeço de uma vida nova, que não pedíramos, sem sabermos, de todo, o que nos esperava e qual o rumo que seguiríamos dali em diante.

Esta experiência de vida foi partilhada pela minha família, pelas famílias de amigos e por milhares de outras, abrangendo um número calculado entre meio milhão a 800 mil pessoas, fruto de uma descolonização apressada, levada a cabo pelo novo Portugal libertado, que se desfez, abruptamente, das suas colónias nos "territórios ultramarinos". Até pouco tempo antes, Portugal, o último dos impérios ocidentais, orgulhava-se da sua vastidão, de territórios imensos e distantes, banhados por três oceanos. Iam da África Ocidental e Central, na costa atlântica (Cabo-Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Angola), passavam pela África Austral e pelo oceano Índico (Moçambique), iam até Timor Leste, entalado entre a Indonésia e a Austrália, e terminava em Macau, na foz do Rio das Pérolas, nos confins do Oceano Pacífico.

Olhando para trás, as memórias das vivências desses tempos de terramoto coletivo, de há 45 anos, permanecem absolutamente vivas e intensas para quase todos, porque traduzem a derrocada de um mundo, cujas referências se perderam bruscamente, da noite para o dia.

Para as várias gerações que viveram esse êxodo - dos meus 12 anos aos 70 anos do meus Avós - o espectáculo da ponte aérea e dos navios que deixavam Luanda e Lourenço Marques/Maputo, ficou-nos gravado na alma para sempre. Numa  aflição total e indescritível, centenas e centenas de pessoas desnorteadas, desesperadas ou anestesiadas pelo choque, procuravam garantir lugares nos aviões e nos barcos sobrelotados. 

Uma mala de mão por pessoa, com pouco mais que umas mudas de roupa, e um brinquedo por criança. A maioria da população estava sem posses porque tudo investira nos territórios de onde então saíam. Os que tinha poupanças, viram-se desfalcados das mesmas em poucos dias, porque o escudo tinha sido desvalorizado e, em Outubro de 1975, o dinheiro local - no caso de Angola, o escudo Angolar - tinha perdido todo o valor, só "servia para forrar paredes", como dizia, incrédulo, o meu avô. O ambiente era de guerra civil e a Metrópole - adjectivo dado até então a Portugal Continental - desligava-se a cada dia, fingia que nada via, só queria "despachar a coisa". 

Já no ar, ao sobrevoar Luanda, o silêncio pesava no nosso avião que vinha à pinha. Todos tinham consciência que se tratava da perda total do trabalho e de um sonho de gerações. Ao desviar o olhar da janela, vi os meus Pais lavados em lágrimas. Senti frio no estômago, as mãos subitamente transpiradas, agarradas aos apoios dos braços. Pela primeira vez, com 12 anos, percebi o que era ter medo.

Fui, como tod@s @s outr@s, considerada "retornada", sem conhecer o país a que supostamente retornava. Durante anos, mais de uma década, fiz parte deste estereótipo, que me categorizava de uma forma na qual não me revia. Resisti como pude e soube, ao longo dos anos da juventude e do início da idade adulta, à revolta contra um rótulo que considerava ultrajante. 

O tempo ameniza quase tudo e, com a convivência, com as amizades feitas  durante os anos de liceu, fui-me adaptando, e as diferenças entre mim e os outros foram-se atenuando. Nas férias, quando se verificava o êxodo de Lisboa e do resto do país em direcção ao Algarve e "à terra" de cada um, eu e o meu irmão trabalhávamos para arranjarmos dinheiro, para podermos viajar assim que atingíssemos a maioridade. A partir dos 18 anos, ao começarmos a viajar Europa fora, abriram-se novos horizontes. Nos anos 80, jovens portugueses a viajarem para o estrangeiro pelo Inter-Rail era pouco comum. Sentia-me uma aventureira, compelida a ir sempre mais longe, e fi-lo, ano após ano durante quase uma década. 

Acabei o curso, estagiei no estrangeiro, tive a sorte de poder escolher o trabalho que quis, tornei-me independente economicamente, casei, criei família. Aparentemente a minha pessoa estava normalizada, pacificada. E, porém, algo fervilhava constantemente debaixo da pele, qual formigueiro ou zumbido subliminar, que acordava ao menor sinal. 

Ao longo de quase cinco décadas, África tem estado sempre presente no meu quotidiano, nas sensações, nos sonhos e nos pesadelos. A minha origem, o chão das minhas raízes, ainda que arrancadas à força, as minhas referências primevas, manifestam-se constantemente, seja para me alertar ou para me acalmar.

Ainda hoje, espanto-me, sem cessar, como permanece intacta a memória do olfato, do paladar, dos sons, das cores e das texturas. Dos confins da infância sou desperta pelo aroma do café acabado de fazer em cada manhã, pelos sons e as cores intensas dos fins de tarde, pelo cheiro da terra molhada depois de uma chuvada súbita que, tal como começava, acabava; vejo-me a franzir os olhos para tentar ver para além da bruma impenetrável do cacimbo, que envolvia os dias de "inverno" em alguns dos lugares onde morámos, deixando um cheiro a pó de talco a pairar no ar. 

Corro descalça pelo mato no meio de uma brincadeira de índios e cowboys e paro, de súbito, para saborear o gosto amargo-doce das bagas vermelhas do café penduradas nos arbustos; revejo o azul intenso do mar calmo na baía do Lobito, e oiço o estrondo das vagas que batiam nos pontões na Praia Morena, em Benguela, no tempo das "calemas"; sinto, enjoada, o calor húmido, abafado, constante, que se colava à pele e nos fazia transpirar sem parar, por mais banhos que tomássemos.

Não esqueço o aroma de uma Muamba acabada de fazer, nem o sabor irrepetível do pirão de farinha branca, ensopado no molho do guisado de carne, feito no fogareiro a carvão, comido à mão, no páteo das traseiras, ou o sabor doce e guloso dos morangos maduros acabados de apanhar, o molho vermelho a escorrer das mãos que limpava na camisa. Ainda estremeço com o ribombar das trovoadas secas e tapo os olhos ao clarão dos relâmpagos, que, às dezenas, riscam o céu carregado de nuvens negras, prontas a despejarem toneladas de água. Oiço o barulho ensurdecedor das cigarras na savana ao entardecer, e danço, ao som ritmado dos batuques de tambores que anunciavam festas em aldeias distantes. Vejo os pés das roseiras que cresciam na Ganda, onde floriam rosas de pétalas gigantes e acetinadas, com cores fenomenais. 

Antecipo a excitação das festas de Natal do Banco de Angola, onde o meu Pai trabalhava, eufórica pelos presentes que íamos receber e, vejo-me, em pleno palco a recitar, nervosa, o meu primeiro poema de Natal; disparo em correria desenfreada com o meu irmão até à beira-mar, para ver quem chegava primeiro e se atirava para dentro de água e sinto, nas plantas dos pés, os picos das pinhas minúsculas das casuarinas espalhadas pela areia, que nos faziam andar aos saltinhos, na tentativa de as evitarmos. 

África foi o meu berço, corre-me no sangue, aquece-me a alma, estimula a minha imaginação. É o fascínio de viagens marcadas pela imensidão dos espaços e pela diversidade das paisagens; é a fileira das acácias rubras na berma dos passeios, os troncos pintados de branco até meia altura, que quando floriam, atapetavam as ruas de vermelho intenso; é a imagem dos embondeiros, esqueletos retorcidos de árvores sem folhas, resistentes à seca e à solidão da savana, com os sacos de múcua pendentes, os frutos brancos no interior, de sabor ácido e adstringente, que deixavam a língua e o céu da boca encortiçados; são as papaieiras e os mamoeiros esguios, os abacateiros e as mangueiras frondosas de troncos possantes, a que trepávamos para ver quem subia mais alto. 

Ao sábado vinham as mulheres negras com os filhos às costas, seguros por panos coloridos atados ao peito, as quitandas à cabeça, carregadas de gorazes, chernes, garoupas, lagostas, que chegavam de barco vindos da Baía Farta. Iam de casa em casa, com os seus cantares lânguidos, gingando as ancas lentamente, ao ritmo das ondas de calor do final da tarde. A cereja no topo do bolo eram os almoços de domingo, em que a minha Mãe se esmerava a fazer os pratos de que mais gostávamos, como lagosta suada com salada russa ou, o seu inigualável rosbife com batata palha. Para terminar, mimava-nos sempre com um pudim flan ou de ovos, afogado em caramelo!

Voltar a Àfrica? Sim, adorava! Mas a outra África, longe dos lugares da minha infância, porque tenho perfeita noção que voltar a eles seria o "genocídio" destas minhas memórias, a destruição de uma parte da minha identidade, do que fui e me marcou, de quem sou!

Como disse Agostinho da Silva, "...todos transportamos cadáveres de nós próprios...", do que fomos na infância, na adolescência, no início da idade adulta... A esses tempos, que significam outras vidas, é impossível retornar, na pretensão espúria de os querermos reviver tal como da primeira vez. Já só existem dentro de nós. Tentar revisitá-los é, quase, cometer suicídio! 



quinta-feira, 7 de março de 2013

Zacatraz! O grito da tribo.



 

Orgulho e preconceito

Domingo, 3 de Março, a família madrugou, saltando da cama às 6.30h da matina para se preparar para um passeio especial a Lisboa. Um dos membros da família ia participar num evento de grande importância pessoal, e quando assim é, o resto da família adere, numa lógica de Um por Todos e Todos por Um!
 
Este é também o lema do Colégio Militar, do qual o meu marido é ex-aluno. Em quase duas décadas de vida partilhada, apenas fui, há vários anos, assistir a uma cerimónia no Largo da Luz, no início de uma abertura solene do ano lectivo. Confesso que não me deixou, então, grande registo na memória, mas a "aura" do Colégio sempre me intrigou, porque anos a fio senti a sua força e o seu apelo, dentro e fora de casa.
 
Não sou filha de militares mas sempre vivi perto deles: sou bisneta de um Coronel de Cavalaria, sobrinha de um oficial ex-Comando, nora de um Almirante, e esta proximidade marca, mesmo para quem nunca partilhou de "teses" militaristas, pelo contrário.
 
Desta vez, porém, decidi aderir ao chamamento, mais para satisfazer a curiosidade e para tentar compreender, ao vivo, o que é isso de pertencer a uma "tribo". Que melhor pretexto do que o aniversário de uma Instituição que comemora os seus 210 anos de existência, agora ameaçada por cortes orçamentais de vulto, que também chegaram às Forças Armadas! Senti, pela primeira vez a força do apelo, despoletado por carta, mail, sms, telefonemas e que teve como objectivo, apelar à participação massiva no evento, para mostrar a importância que esta instituição tem numa parte da sociedade Portuguesa.
 
O encontro, no Marquês de Pombal, começou morno. Era cedo, 8h30m da manhã, e apenas se viam alguns grupinhos de 3, 4 pessoas espalhados no semi-circulo das traseiras da estátua, que madrugadoras esperavam por algo de maior impacto. Pensei para comigo, "frouxa iniciativa, o pessoal comodista prefere dormir, num Domingo frio e cinzento, do que solidarizar-se por outros valores mais altos." 
 
Uma hora depois, pelas 9h30m, o cenário mudara consideravelmente. A meia lua enchera-se com os alunos, com idades entre os 10 e os 17 anos, que marcavam presença com os seus uniformes impecáveis; viam-se ex-alunos de todas as idades, de octogenários a recém saídos do Colégio, identificados com os pins da barretina na lapela; os familiares, tal  como eu, a minha sogra e a minha filha, lá estavamos em profusão, e ouvia-se o brúáaaa da pequena multidão, que saira de casa à última hora, mas muito a tempo de participar no início da cerimónia. 
 
Nessa altura já me sentia empolgada: "a malta finalmente aparecera", e a festa prometia. A chegada da Escolta a Cavalo acentuou essa mudança de humor, cerca de uma vintena dos melhores alunos de equitação dos 3 últimos anos, rapazes entre os 15 e os 17, mostravam-se garbosos, muito direitos nas garupas das suas montadas, flâmulas, lanças e espadas em punho, conscientes do impacto que causavam em todos os presentes. 
 
Às 10h em ponto começou a cerimónia com a homenagem do Colégio aos ex-alunos. Depois, uma voz de comando incitou ao GRITO DA TRIBO: "ZACATRÁZ, ZACATRÁZ, ZACATRÁZ!", que ecoou pelas fachadas dos prédios em volta, provocando-me uma estranha sensação, e me deixou absolutamente silenciosa, quase temerosa, pelo impacto das vozes em uníssono!
 
Seguiu-se, de imediato, o hino do Colégio, cuja letra desconhecia por completo, mas surpreendeu-me, de novo, a adesão massiva. Por fim, cantou-se o hino nacional, e eu, que não o cantava em público, alto e bom som, há longos anos, confesso que me senti bastante comovida. 
 
Depois, abriram-se alas e começou o desfile a contornar a Estátua do Marquês de Pombal e a descer a Avenida da Liberdade. Surpreendente foi ainda o cordão que se formou, as pessoas a avançarem e a acompanharem a marcha da 1ª companhia, a dos miúdos de 10 anos, depois a da 2ª, da 3ª e da 4ª companhia, a dos mais velhos, formada pelos alunos que frequentam o 11º ano, sempre ao som de gritos repetidos, constantes de ZACATRÁZ, ZACATRÁZ.
 
Por fim, a Escolta a Cavalo fechava o desfile, imponente, poderosa, orgulhosa, bela representante desta Instituição que comemorou 2 séculos e 10 anos!
 
Tudo terminou no Rossio, com a chegada da banda do Exército, no Largo da igreja de S. Domingos, onde se juntou a multidão, VERDADEIRA MULTIDÃO, que veio a pé, numa festa e alegria esfusiantes, pelos seus filhos, pelos seus netos, por si próprios e pela juventude já distante.
 
A festa para os ex-alunos prolongou-se dia fora, terminando em jantar no Colégio, num menu simples: caldo-verde, o célebre "amarelo" - roupa velha feita com carne estufada, batata frita às rodelas e ovos batidos a envolver, considerada verdadeira iguaria, difícil de reproduzir em casa, por mais que se tente - e arroz doce, tão compacto que dá para atirar à parede. MAS ELES ADORAM!
 
Não pretendo fazer aqui a apologia do Colégio Militar, mas o facto é que esta instituição faz parte integrante da nossa sociedade há 200 anos, tal como West Point nos Estados Unidos, o Sistema de Colégios Militares no Brasil, a École Militaire em França e ainda a Royal Military Academy em Sandhurst, Reino Unido.
 
Este é um colégio privado, como tantos outros, com a diferença de educar os seus alunos em ambiente militar. Tento vencer o meu preconceito, o da maioria de nós, que no pós 25 de Abril e até hoje adquiriu anti-corpos a este ambiente, com a pouca ou frágil acção do próprio colégio, que não soube adaptar a sua comunicação ao longo dos últimos anos, ao ponto de se limitar a assistir a situações polémicas, negativas e mediáticas, sem dar qualquer resposta convincente às mesmas, INCAPAZ DE VEÍCULAR A MENSAGEM SIMPLES DO QUE FAZ PELOS JOVENS QUE O FREQUENTAM, E QUE DELE SE ORGULHAM para o resto das suas vidas!
 
O colégio tem hoje um regime de internato para aqueles que assim o decidem, e um regime de semi-internato para quem tem a "sorte" de ter os pais a viverem perto, e isto faz toda a diferença, por comparação com o modelo seguido durante décadas, em que só havia a possibilidade de internato, com saída ao final da manhã de sábado, depois das aulas e do almoço, com retorno ao domingo ao final da tarde. 
 
Sendo um colégio privado, não é caro, ao contrário do que a maioria pensa, nem exclusivo para uma elite, a dos que podem pagar! As propinas incluem alimentação, 5 refeições ao dia, e não menos importante, uma série de actividades como: Equitação, Esgrima, Atletismo, Natação e Ginástica. É famosa a classe especial de ginástica desportiva do Colégio, conhecida pela alcunha de "Os gafanhotos".
 
Para além disso, e tratando-se de um colégio militar, é dada Instrução Militar, com aprendizagem do manuseio de armas (aqui as Mães ficam com os cabelos em pé), mapas cartográficos, orientação e técnicas básicas de sobrevivência.
 
Na voz de um deles, o testemunho é o de que "o Colégio é uma elite, sim, mas à saída, não à chegada! Qualquer um que tenha boa capacidade física e mental (há exames para entrar), e cujos pais possam pagar as referidas propinas (as quais são inferiores a muitos outros colégios privados), pode frequentar o Colégio". 
 
Conheço pessoalmente alguns dos jovens alunos, são da geração da minha filha, e estão em vias de terminar o seu curso de escolaridade obrigatória. Como em qualquer escola, há excelentes alunos, bons alunos e alunos médios, mas NÃO HÁ MAUS ALUNOS, porque o nível de exigência desta Instituição tal não permite, havendo desde sempre um sistema de méritos e deméritos, que se traduzem na atribuição de medalhas de Aptidão Literária e de Aptidão Física. Há quem as tenha todas - bastava ver o orgulho com que vários dos alunos, no domingo passado, exibiam essa colecção de medalhas ao peito - outros apenas têm algumas e muitos outros, nenhuma, caso daqueles que não atingem os parâmetros mínimos para se qualificarem para esse prémio de MELHORES ENTRE IGUAIS!
 
Ao longo de décadas, o Colégio tem provado a excelente qualidade dos seus conteúdos curriculares e programáticos, ao preparar jovens para as mais diversas profissões, que ambicionam por muito mais, e que raramente querem seguir uma carreira militar, antes valorizam a experiência do Colégio, a ideia do "Um por Todos e Todos por Um", numa aprendizagem de partilhas, de camaradagem, de cumplicidades e proteção entre pares, que perdura pela vida fora. A TRIBO NO SEU MELHOR!
 
Então, porque olhamos, quase sempre, para o Colégio Militar como uma instituição a abater, como sendo "uma aberração", como não havendo espaço para este tipo de ensino, quando na realidade a maioria dos rapazes que o frequentam já não são filhos de militares, mas filhos de civis, de várias proveniências dentro do País e muitos, cada vez mais, dos PALOP. 
 
Nenhuma instituição está isenta de fragilidades e de defeitos, mas o facto é que "...claramente as virtudes inculcadas pelo Colégio os suplantam, e em larguíssima escala! E com benefício de toda a sociedade, pois a maioria dos alunos escolhe a vida civil."
 
A Democracia é um sistema político que permite o convívio e a proliferação de várias realidades, algumas nos antípodas da maioria consensual, e aceita-as como válidas e contributivas para a harmonia do todo social.
 


Porquê então deitar fora 210 anos de experiência feita, e de um valor que se renova a cada geração que passa pelo Colégio Militar? Olhemos para os que orgulhosamente gritam bem alto a origem e proveniência da sua formação, e entendamos que não se tratam de "freaks, aliens", cultores de um estilo de vida "fascista e fascizante com saudosismo do passado".
 
Este pensamento é "demodé", está "out", e só perdura porque o PRECONCEITO vive e alimenta-se da IGNORÂNCIA e da incapacidade de aceitar a diferença!  
 
"Depois de lá ter estado 7 anos (agora 8), sim, concordo, do Colégio sai uma ELITE!  Mas uma Elite não de dinheiro...mas de Valores." (sic)


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Eu e os Outros: uma Amizade de várias cores.




Forever Babes

Num mundo tão árido como aquele em que vivemos hoje, há que valorizar, cada vez mais, o que vale a pena: família e amig@s. São ambas dimensões que garantem a nossa sobrevivência, são porto de abrigo e lugares de afectos, que traduzem, de forma inequívoca, a nossa humanidade.

O tema hoje é o da Amizade, esse valor supremo a que nos devemos agarrar como lapas a rochas, porque verdadeiro, escolhido, são e único.

Tenho o privilégio de ter alguns amig@s para a vida, que me têm acompanhado ao longo do percurso, com tudo o que isso implica: bons e maus momentos, profundas tristezas e grandes alegrias, silêncios e algazarras, discussões, trocas de ideias, convergências e algumas divergências, enfim, tudo o que importa registar e nalguns casos, também, esquecer, perdoar e ser perdoada.

Um dos meus maiores prazeres é fruir da companhia de 7 mulheres - número mágico - que são minhas amigas há quase 2 décadas!
 
Fomo-nos "coleccionando" por etapas, tendo-nos conhecido todas num dos nossos primeiros locais de trabalho, uma agência de publicidade que foi referência no mercado da comunicação durante algumas décadas, até fenecer lentamente. Dela só resta o nome mítico, o resto, "já era"! Felizmente a Amizade perdurou, amadureceu, enriqueceu-se e, tal como um excelente vinho tinto, transformou-se em preciosidade.
 
Sendo todas tão absolutamente diferentes, partilhamos, ao longo dos anos de quase tudo um pouco, e fazemos de cada reunião um evento especial, mesmo quando os assuntos são sérios e graves.
 
Desde há anos que elegemos um fim-de-semana de verão para uma fuga a 8. Marcamos com muita antecedência e vamos fazendo a contagem decrescente no calendário comum, e tal como em qualquer viagem que se preze, a antecipação da partida, os preparativos, "quem leva carro e dá boleia a quem, quem partilha quarto com quem, quem leva o pequeno-almoço para o 1º dia, a ida às compras, os preparativos para um dia inteiro de total descontração e "sessão de bronze" na praia, depois os caracois e as cervejolas na tasca da esquina antes do jantar e da grande noite, enfim, tudo faz parte do imenso prazer de estarmos juntas.
 
Escusado será dizer que:
-maridos não entram, apenas colaboram, para que tudo corra sobre rodas, e ficam com os herdeiros nas suas alegres casinhas, tentando adivinhar "o que será que elas estão a fazer!"
- Jamais lhes contamos ou a quem quer que seja, porque aqueles 2 dias são sagrados e exclusivamente nossos.
- Há sempre granel e bruáaaaa a perder de vista, mas sendo os divertimentos simples, e a conversa amena - às vezes - o mote é "bora lá despir a roupagem  de mulheres/mães/profissionais certinhas e compostinhas, e sem nunca ferir a liberdade alheia, cortimos cada minuto ao nosso ritmo, estando-nos nas tintas para os outros todos.
 
Cada ano é uma verdadeira festa, e a única pena é quando não conseguimos estar todas presentes. O resto, é-nos indiferente,
 
O curioso, é que conseguimos atingir um ponto tal de equilíbrio, partilha, confiança, irmandade, ternura, sentido crítico e bom-humor, que nos espantamos a nós próprias, e mais ainda, aos outros, próximos e distantes.
 
É frequente ouvirmos, com alguma razão, provavelmente, que "muita mulher junta não funciona". Pois tem funcionado fantásticamente, e no meio do ruído de tanta "galinha junta", temos permanecido isentas às invejinhas, às tricas sem interesse, à pequenina maldade mesquinha, aos segredinhos, ao corte. 
 
Olhando para nós 8 como se fosse espectadora de um sketch alheio, consigo aperceber-me das nuances das outras 7, das semelhanças e das diferenças, e o que sobressai, o "core" e o fundamental, é que o que nos une, sem dúvida, é superior ao que nos separa. Daí o sucesso da troupe!
 
Neste grupo de mulheres com idades entre os 35 e os 50 anos, há uma panóplia de cores muito diversas, verdadeiro arco-iris que varia entre tons fortes, permeado por meios tons:
 
- há "vermelhos" pujantes, com personalidades fortes, convicções inabaláveis e vontades férreas, capazes de fazerem as coisas acontecer, que lutam sem descanso por aquilo em que acreditam;
 
- há "azuis intensos", com uma imensa capacidade de aceitação da sua mudança, e com um imenso espírito de sacrifício, que prescindem das suas carreiras e do seu sucesso por um bem maior, em prol da felicidade da família e de terceiros;
 
- há "dourados luminosos", figuras que dão nas vistas pela sua beleza e inteligência, profissionais de gabarito reconhecidas pelos seus pares, dado o valor das suas realizações, mães e filhas extremosas que se desdobram em múltiplas facetas;
 
- há ainda espaço para "os beges", os supostamente apagadinhos. Conciliadores por natureza e diplomatas, têm opiniões sobre tudo e nada, mas evitam expressá-las, fugindo a sete pés de horríveis e incómodas discussões, que abominam. Quando "motivados", porém, revelam-se teimosos, capazes de arroubos de audácia e de uma coragem surpreendente, e lá dão "um arzinho da sua graça", mostrando um alter-ego "mauzinho", danadinhos pela crítica acutilante e e pela palhaçada.  
 
Daqui só pode sair "desgraça", isto é, "le vrai bordel"!
 
Este texto é uma homenagem que presto a esta troupe de amigas que começou há cerca de 22 anos, e que perdura até hoje, sem mácula. Qualquer semelhança com a realidade NÃO É FICÇÃO, é REAL! As 8 miúdas são verdadeiramente de carne e osso, que o digam os maridos e filhos, pais e sogros, cravados até à medula, chefes e subordinados que pressentem e "sofrem" na pele os nervos que antecedem estes encontros, porque a palavra de ordem é, "alto e pára o baile que hoje tenho que sair mais cedo, doa a quem doer, e se não gostarem, danou-se!".
Não é fácil para os outros, que se sentem tremendamente afectados pela força inevitável desta atracção, a da AMIZADE. Pois, temos muiiitaaaaaaaaa penaaaaa! 


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Chanel, Chanel!

 
O ridículo dos outros que nos fica tão bem!
 
Um dia, lá atrás, um amigo disse algo que nunca esqueci: "Quem tem medo de fazer figuras ridículas é porque tem medo de se expôr". Aquilo mexeu comigo, porque ainda hoje tenho fobia do ridículo, e porém...
Quando observamos os outros no seu dia a dia, por vezes somos implacáveis na sua avaliação, mesmo que não o queiramos. Julgamo-los à luz de determinados pressupostos, e achamos que estamos isentos ou até imunes de incorrermos em situações semelhantes.
Lembro-me, com saudade, de momentos que partilhei com a minha Mãe, Avó e até amigas, em que "gozava" com momentos específicos que considerava hilariantes e até ridículos. Era bastante mais nova e com pouca experiência de vida, e como tal, detinha a sabedoria dos incautos, esses que acham que a vida é o aqui e agora, em que tudo é possível, sem limites, sem consequências! Vem o dia, mais à frente, em que a Vida nos troca as voltas, e com espanto, realizamos que não só nos "damos ao ridículo", como ainda por cima, trilhamos passos semelhantes, quase iguais, aos que criticámos a outros. Tem piada quando não é grave.
Chanel, Chanel, vem cá, onde te meteste? Todos os dias, ao longo dos últimos anos, eu e os outros moradores deste prédio ouvimos esta lengalenga, dita em tom de suave desespero, pela senhora que mora no 8º andar. Eu e a minha filha observámo-la muitas vezes da janela, e ríamo-nos do ritual diário da senhora viúva que passeia duas vezes por dia a sua cadelinha, e que a trata como membro da família, talvez a neta que nunca teve. Ridículo!
Chanel, Chanel, passou a ser um refrão que ambas entoávamos em coro, mal percebíamos a sua presença no parque exterior, donas de uma superioridade acima de qualquer reparo. Até ao dia em que Blackie entrou de rompante nas nossas vidas.

Cachorrinha de pelo negro, brilhante e macio, olhos dourados e meigos, orelhas sempre espetadas, morta de fome e carente de contacto humano, foi dar a casa dos meus sogros, à procura de um porto de abrigo em noite de temporal.
Escusado será dizer que fomos imediatamente adoptados por ela, com a total adesão e insistência da minha filha, que passou a considerá-la a “mana mais nova” que não tivera a sorte de ter!

Nos primeiros dias olhei-a desconfiada, incapaz de decidir se aceitava de bom grado aquela intromissão ao equilíbrio do nosso universo familiar, sobretudo porque a asma e as alergias que sempre me afligiram, impediram que houvesse espaço para animais, tanto em casa dos meus Pais, como em minha casa.
Com o passar dos dias, porém, essa resistência abrandou, fruto da surpreendente ausência de espirradelas e comichões, após contacto com a pequena hóspede de raça indeterminada, e lá me fui habituando à sua presença, grandemente facilitada pelas "graçinhas e brincadeiras próprias de tão tenra idade".
Adaptámo-nos tão facilmente à sua presença, que em menos de um ápice passamos a considerá-la como o mais novo membro da família, a quem chamamos carinhosamente "a nossa filha peluda africana”. 
Reflectindo sobre o quão irónica a vida pode ser, lembrei-me recentemente que a minha Avó materna teve uma cadelinha, durante alguns anos, quando os meus Pais ainda namoravam. Dona de casa aprimorada, senhora de rotinas diárias, ritmos rígidos e possessiva com os entes queridos, teve a dada altura que aceitar, resignada, a emancipação dos filhos. Procurou, por isso, um ser submisso, capaz de aceitar, sem reservas, ser o alvo do seu amor e esmeradas atenções.

Assim, adoptou a Micas, cadelinha tão estimada como se fosse uma filha mais nova, surgida fora de tempo. Micas era o ai Jesus da minha Avó que lhe falava como se esta tudo entendesse, leváva-a para todo o lado, provocando alguns embaraços e inclusivé, fazia-lhe roupa, umas camisolas de malha para a proteger das noites húmidas do cacimbo de Benguela, e "pior ainda", punha-lhe fralda quando ela estava com o cio e impedia-a de sair à rua sem a sua supervisão, porque a "ocasião faz o ladrão"! A virgindade da cadela foi motivo de chacota entre o grupo mais restrito de amigos, o que ofendeu profundamente a minha Avó, mais pelo tema discutido em público, do que pelo facto em si. 

O tempo passou e muita coisa mudou, mas hoje, óbviamente, somos nós o alvo da galhofa dos vizinhos sempre que saímos com a nossa cadelinha para passear, e dizemos, por nossa vez, no mesmo tom de suave desespero, a lengalenga " Blackie, vem cá Blackie..."

Blackie adoptou-nos com 5 meses, em Maio passado, estando connosco há 9 meses. Por mérito próprio, tornou-se membro de pleno direito desta família, contribuindo com uma quota parte de peso (10Kg) para o equilíbrio do quarteto. Em dias de frio, tem direito a vestir a sua camisola rosa, que contrasta lindamente com o seu pelo negro brilhante, e que a protege da húmidade da Serra de Sintra ou da Serra de Grândola, de onde é originária. Senhora de uma personalidade forte, exibe com orgulho e elegância a sua estirpe de membro de uma raça bem determinada, a de ser um cão de caça, um VERDADEIRO PODENGO PORTUGUÊS!