sábado, 26 de janeiro de 2013

O bege da discórdia - revisitado!

    
                  


                            Uma cor, muitas nuances                                  
 
Falei-vos recentemente da minha leitura dos outros através das cores, e nesse dia, destaquei as "pessoas vermelhas". Hoje, falo-vos das "beges". É o outro extremo da minha escala, e são, na minha percepção, absolutos opostos!
 
Antes de mais, um preâmbulo: o BEGE É CÔR? 

Hmmm, não faz parte do arco-íris, diz Perpétua...
– Posso colocar perto do amarelo, pergunta Valéria?
– Boa. O bege fica perto do amarelo clarinho, antes do verde água...alvitra Januária.

– E do castanho chocolate, não???, retruca Gervásia entre duas trincas no amendoim torrado.
Er... não sei!!!
Não fica perto do branco também???, acrescenta Perpétua já irritada - ainda a noite mal começou e já estas fulanas se armam aos cucos!  
- Claro, claro....afiança Pitinha.
– Porquê, dúvida Januária?
O arco-íris não tem castanho, 
nem bege, nem preto, argumenta Engrácia, já saturada da polémica.
– Val, pelamor, é só uma côr do guarda-roupas!, diz a brasileira de serviço.


Bom, a minha conclusão é que o BEGE É UMA CÔR! Não é côr primária, e não é quente nem exaltante como o vermelho, é um facto! É uma cor de tom próximo do branco, porém subtilmente acastanhada...

Bom, ADIANTE! No fundo, no fundo, os beges são umas "Marias vão com as outras". Ficam bem com o branco e também com o preto, reclamando-se da sua linhagem "CLÁSSICA", e tanto assim, que não há colecção de alta-costura que não tenha, pelo menos, um vestido de noite em "soie sauvage bege", umas sandálias beges com saltos de 20cm vermelhos à Louboutin, uma echarpe preta e bege...e por aí fora. Olha o Valentino, sim o costureiro italiano, o bege é a sua côr favorita! Então e o Armani, que conjuga bege e cinza na perfeição, já para não falar no Ralph e no Tierry Muggler com as suas mini-saias e calções de cóz alto, em bege e cornucópias brancas...afirma Lili do alto da sua imensa sabedoria de passerelle. 

- Tudo bem, diz Fafá, o peito alteado pelo silicone rígido, mas as pessoas beges passam por ser pouco assertivas, ter pouca energia, baixa auto-estima e falta de personalidade. Convivo com muitas e sei do que falo! Talvez por isso sejam conciliadoras por natureza, dando excelentes diplomatas, frequentemente chamadas a pôr água fria na refrega alheia, não vos parece?, questiona eriçada Bibá. Têm opiniões sobre quase tudo, mas evitam expressá-las, pois daí pode surgir uma incómoda discussão, e desta fogem a sete pés! Por isso desistem facilmente de defender as suas convicções.

- Interiorizam demasiado situações vividas no quotidiano, e são dadas a momentos de profunda tristeza, acrescenta Kiki, mas tudo isso é brutalmente compensado por uma sensibilidade extrema, direi mesmo, à flor da pele, e como boas empresárias da noite, a sua criatividade vive de frequentes picos...nocturnos!

Desatam-se a rir em côro! Empresárias da noite? Só se for por se armarem em relações públicas de restaurantezecos de bairro?, afirma Perpétua esganiçando a voz para se fazer ouvir!

- Olhe lá, menina, não invente, sim!, diz Bibá ácida. O que os beges são é almas penadas que não têm onde cair mortas, e escudam-se atrás de uma pretensa veia poética que é acentuada pela copofonia - leia-se, melatonina - que lhes provoca frequentes crises de espertina, tudo para enfrentarem as longas noites de insónia, com as cabeçinhas a rebentar de ideias mirabolantes.

Tirando partido da condição de anfitriã desta tertúlia de loucas varridas, tento pôr água na fervura: vá lá, temos que admitir que os beges são Clarividentes! Altas horas da madrugada, aproveitam o silêncio do lar para descarregarem a fúria das suas ideias tresloucadas, martelando nos teclados dos pobres portáteis, quais pianos de onde escrevem crónicas mundanas totalmente desinteressantes... Dos seus dedos jorram, muitas vezes, versos depressivos e pungentes de pura melancolia. Nem o FADO se lhes compara!

Dou por mim a gesticular à "Maestro", e as oito cabeças ôcas viradas na minha direcção, demonstram espanto e comiseração: please my dear, diz Fafá de peitaça arfante, exercitando a sua pronúncia texana aprendida no mercado do Bulhão: give me a break!

Continuo o meu comício feminista, defendendo os beges: nessas noites, pujantes de força e determinação, os bejes sentem-se prontos para enfrentar o mundo e para o mudar! Ah TRISTEZA, COMO PODES SER TÃO BELA E INSPIRADORA!!!! 

- Quem quer um chá de menta e canela?, pergunto conciliadora. Como ninguém se manifesta, parto do princípio generalizado que "quem cala consente", e chamo o mordomo para preparar o chá e trazer biscoitos de gengibre.

Eis senão quando chega a luz da aurora! Os primeiros raios de sol mostram cruamente a volatilidade de tais ousadias. A força anímica da mole esvai-se e o sono finalmente acontece, e qual Sansão despojado da sua cabeleira, os beges perdem os assomos de audácia e readquirem a lucidez. Riem-se então de si próprias e da veemência das suas convicções inabaláveis, sacudindo tristezas e sofrimentos vividos intensamente, nessas horas recentes e tormentosas.
 
É dia finalmente e a PAZ É REPOSTA, e com ela regressa a impotente normalidade que chama à realidade.

Ouvem-se bocejos. Disserto: "um dos problemas das pessoas beges, é terem uma total falta de confiança nas suas capacidades e por isso, ficam-se pelas meias tintas, e como receiam expôr-se, NÃO OUSAM OUSAR! São capazes de rejeitar uma ideia brilhante, só pelo trabalhão que dará expô-la a terceiros. Donde, mais vale arrumá-la no sótão do esquecimento..."

Realizo que já não me ouvem!

- Pensando bem, diz Lili bocejando, arranja-se uma taça de vinho tinto em vez de chá? Preciso de acordar para voltar para casa! Aceno com a cabeça e continuo: esta é apenas uma das razões porque os beges são criativos frustrados, que raramente acham que estão no caminho certo. Sabem que têm potencial para muito mais, e têm imensas capacidades inatas que os poderiam levar muito longe, mas falta-lhes O QUASE, e este PEQUENO NADA é um MUNDO DE DIFERENÇA!
Óbviamente estas pessoas beges acabam por ser eternas apagadinhas.
 
- Bom, eternas é exagero!!!, responde Bibá num assomo de energia. Quando perante "condições propícias", têm arroubos de audácia e de coragem e lá conseguem "dar um arzinho da sua graça", ao ponto de se surpreenderem mais do que aos outros, do género: "bolas, afinal também sou capaz de ser brilhante..."
 
Nada que não se resolva, basta dar-lhes espaço, credibilidade e algum afecto para que os beges floresçam resplandescentes de energia e criatividade. Poderão então revelar-se em tons mais vivos e brilhantes, e haverá, com certeza, reflexos de muitas outras cores, mas por mais que se pintem, NUNCA SERÃO VERMELHOS!

Desconheço a autora deste epílego, mas já pouco importa.

Acompanho as minhas convidadas ao portão, de onde partem nas suas viaturas acelerando a fundo, convictas de que assim afirmam a sua feminilidade viril, quais fémeas em busca de macho disponível. Enfim só, mais o Jarbas, que finalmente me serve o chá de menta com canela e bolachinhas light de gengibre.

Uf, só as vejo daqui a uma semana! Agora que já dei cabo dos beges, apareça alguém que os reabilite.
BOA NÔTE!

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Guião de filme à Fellini



Vida de cão...moderninho

Imaginem uma família feliz, que na véspera comemora o 16º aniversário da filha. Jantar melhorado, tudo o que a princesa gosta, e à volta da mesa, Pai, Mãe, Filha e Cadela regalam-se com um belo fondue e uma tarte fantástica de leite condensado à sobremesa (a receita não faz parte do Guião).

A noite passa e amanhece um novo dia.
O Pai está cansado e põe o despertador para 1 hora mais tarde do que o habitual.
A Filha levanta-se com as galinhas, às 07h da matina, vá-se lá saber porquê, já que a escola fica a 5m e as aulas só começam às 8:20h.
Depois de se arranjar, toda apinocada e vestida como se fosse verão, a Filha vai à cozinha fingir que toma o pequeno-almoço. Aproveita e vê TV, uma série qualquer para totós que estão acordados às 7:30h da matina a verem séries para totós, como ela.


Lá fora chove. De repente, a Filha apercebe-se que são 7:50h! Poça, é tardíssimo para sair para a escola. Como mal comeu, bora preparar um lanche para meio da manhã, e cheia de pressa, para esperar ao frio e à chuva pelos amigos, entra de rompante na cozinha. Os gestos são bruscos, está desatinada. Pega na pera, volta-se para agarrar o sumo e zás...entorna a panela de óleo do fondue.

Há óleo por todo o lado! Quase parece bruxaria mas felizmente não se sujou.
Vai à procura do rolo de papel mas...bolas,  acabou. Vai à dispensa e saca os guardanapos de papel, que espalha à balda por cima das poças e espirros de óleo, e esfrega que esfrega para absorver. Leva 5m nesta operação de "limpeza relâmpago".


Olha para o relógio e pensa: já chega, ninguém vai dar por nada. Pensando bem, como o chão está um bocadito escorregadio, vou deixar um bilhete à Mãe. Talvez na casa de banho porque assim, quando se levantar, vê logo a mensagem:"Mãe, entornei o óleo do fondue mas já limpei. Bjo."



A Filha sai para a escola enervada mas o ar frio acalma-a.  
Em casa, a cadela acorda com sede e uma pontinha de fome. Levanta-se da cama, olha para os donos e vê que ainda dormem. Não faz mal, pensa para consigo, vou beber água e também já volto para a minha caminha quentinha.
Entra na cozinha e...snif, snif! Que é isto, o chão está escorregadio...mas cheira bem! Vê uma pocinha de uma coisa que parece água...será? Não será? Água não é com certeza, mas nada como experimentar. E lá vai ela, lambendo as pocinhas que encontra à volta do fogão. Quando acaba o servicinho de limpeza, suspira: uuhhhmmm, que pena, era saboroso. Mas ainda bem que acabou porque já estava a ficar enjoada. Nada como umas trincas na ração e uns golos de água pura. E agora, caminha aí vou eu!

Toca o despertador às 08h e o Pai levanta-se a resmungar: tou podre de sono, dormia mais um bocadinho, mas a maldita reunião das 09h...Em passo acelerado mas trôpego, dirige-se para a cozinha para ligar o esquentador. Espreita a sala e pensa: a miúda já deu de frosques. Gostava de ser mosca para saber qual é a pressa. Dá 2 passos na direção da cozinha, decidido a despachar-se rapidinho, e catrapum, foge-lhe o chão por baixo dos pés, uma perna para cada lado, procura apoio na parede e cai de costas batendo com a cabeça no chão. Geme, geme e pragueja.

A Mãe dormita, quentinha mas ouve a resmunguice e pensa: bolas, tão cedo e já a refilar! Vira-se para o outro lado, com um sorrisinho ao canto dos lábios: vantagens do desemprego, poder dormir até mais tarde. Tem pena do marido e da filha mas é a vidinha, e tempos houve, anos a fio, em que era a 1ª a saltar da cama.

Acorda estremunhada. Alguém lhe toca no ombro e diz: entornaste óleo ontem à noite? Eu? Claro que não! Pois então a filha fez das dela e para não variar, fingiu que limpou. Dei um malho que me ia partindo todo! Aflita, pergunta: magoaste-te? Sim, mas já passou. Sou rijo!

Ela suspira e diz: ok, já me levanto e lavo o chão com água a ferver e detergente. Deixa estar, diz ele. Tem tempo. É o que ela quer ouvir e volta-se para o outro lado a pensar: diabo da miúda, nem com 16 anos deixa de fazer disparates. Logo conversamos.

O Pai sai, depois de tomar o pequeno-almoço.

A Mãe acorda de súbito com um ruído esquisito: que raio é isto? Olha à volta e vê a cadela ao lado da cama a tremer. Bichinha, que se passa? A cadela vomita e ela grita: NÃO, AQUI NÃO! Salta da cama, agarra na bicha pela coleira e leva-a para a cozinha....e sem tempo para reagir, sente o chão a escorregar e estatela-se no meio da cozinha, arrastando a cadela consigo. Esta 
geme e vomita de novo. A Mãe assusta-se e diz: espera, bichinha, vamos beber água. Estás mal disposta? Bebe água que passa. Mas quanto mais água bebe, mais vomita e não passa!

No veterinário o diagnóstico é simples: a cadela comeu óleo em excesso que lhe fez mal. Há que purgar, fazer uma lavagem ao estômago... Jesus Cristo e agora?


2 horas depois, de regresso a casa, a cadela acalmou, e a Mãe limpa finalmente o chão com água a ferver e detergente. Duas, três vezes porque não há meio de fazer desaparecer a gordura, que resiste, qual fina camada protectora, indiferente à utilidade da mesma.

18h, a Filha chega a casa e pergunta de imediato: Mãe, viu o meu bilhete desta manhã, sobre o óleo do fondue? A Mãe faz um trejeito irónico e responde: eu não, mas parece que o Pai viu! A Filha olha-a intrigada, e súbitamente pálida pergunta: e então? Então nada, responde a Mãe, pergunta ao teu Pai quando ele chegar!
A Filha suspira: ok, já sei que vou ouvir das boas! Vai ter com a cadela, agarra-se a ela e diz pesarosa: minha bichinha, ninguém me compreende como tu! Dá beijinho à tua mana, dá!