quarta-feira, 20 de março de 2013

Out of África





 
Nasci em África, tal como os meus irmãos, os meus pais, tios, primos, Avô e Bisavós maternos, assim como outras gerações que nos antecederam. As raízes africanas de uma grande parte da minha família perdem-se no tempo, divididas entre Cabo-Verde, Angola, África do Sul e Moçambique.

Em final de 1975, fruto das circunstâncias políticas resultantes da Revolução de 25 de Abril de 1974, fomos confrontados com uma realidade que até então nos parecia imutável, inquestionável na sua normalidade. Fomos obrigados a deixar uma terra que considerávamos nossa, sem nos terem consultado ou dado sequer a oportunidade de tentarmos uma via alternativa. Partimos, em direcção a outra realidade, até um refúgio distante do nosso imaginário, estranho, e onde, para muitos dos residentes, nem sequer éramos bem-vindos. Portugal continental.

Foi, para todos, o recomeço de uma vida nova, que não pedíramos, sem sabermos, de todo, o que nos esperava e qual o rumo que seguiríamos dali em diante.

Esta experiência de vida foi partilhada pela minha família, pelas famílias de amigos e por milhares de outras, abrangendo um número calculado entre meio milhão a 800 mil pessoas, fruto de uma descolonização apressada, levada a cabo pelo novo Portugal libertado, que se desfez, abruptamente, das suas colónias nos "territórios ultramarinos". Até pouco tempo antes, Portugal, o último dos impérios ocidentais, orgulhava-se da sua vastidão, de territórios imensos e distantes, banhados por três oceanos. Iam da África Ocidental e Central, na costa atlântica (Cabo-Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Angola), passavam pela África Austral e pelo oceano Índico (Moçambique), iam até Timor Leste, entalado entre a Indonésia e a Austrália, e terminava em Macau, na foz do Rio das Pérolas, nos confins do Oceano Pacífico.

Olhando para trás, as memórias das vivências desses tempos de terramoto coletivo, de há 45 anos, permanecem absolutamente vivas e intensas para quase todos, porque traduzem a derrocada de um mundo, cujas referências se perderam bruscamente, da noite para o dia.

Para as várias gerações que viveram esse êxodo - dos meus 12 anos aos 70 anos do meus Avós - o espectáculo da ponte aérea e dos navios que deixavam Luanda e Lourenço Marques/Maputo, ficou-nos gravado na alma para sempre. Numa  aflição total e indescritível, centenas e centenas de pessoas desnorteadas, desesperadas ou anestesiadas pelo choque, procuravam garantir lugares nos aviões e nos barcos sobrelotados. 

Uma mala de mão por pessoa, com pouco mais que umas mudas de roupa, e um brinquedo por criança. A maioria da população estava sem posses porque tudo investira nos territórios de onde então saíam. Os que tinha poupanças, viram-se desfalcados das mesmas em poucos dias, porque o escudo tinha sido desvalorizado e, em Outubro de 1975, o dinheiro local - no caso de Angola, o escudo Angolar - tinha perdido todo o valor, só "servia para forrar paredes", como dizia, incrédulo, o meu avô. O ambiente era de guerra civil e a Metrópole - adjectivo dado até então a Portugal Continental - desligava-se a cada dia, fingia que nada via, só queria "despachar a coisa". 

Já no ar, ao sobrevoar Luanda, o silêncio pesava no nosso avião que vinha à pinha. Todos tinham consciência que se tratava da perda total do trabalho e de um sonho de gerações. Ao desviar o olhar da janela, vi os meus Pais lavados em lágrimas. Senti frio no estômago, as mãos subitamente transpiradas, agarradas aos apoios dos braços. Pela primeira vez, com 12 anos, percebi o que era ter medo.

Fui, como tod@s @s outr@s, considerada "retornada", sem conhecer o país a que supostamente retornava. Durante anos, mais de uma década, fiz parte deste estereótipo, que me categorizava de uma forma na qual não me revia. Resisti como pude e soube, ao longo dos anos da juventude e do início da idade adulta, à revolta contra um rótulo que considerava ultrajante. 

O tempo ameniza quase tudo e, com a convivência, com as amizades feitas  durante os anos de liceu, fui-me adaptando, e as diferenças entre mim e os outros foram-se atenuando. Nas férias, quando se verificava o êxodo de Lisboa e do resto do país em direcção ao Algarve e "à terra" de cada um, eu e o meu irmão trabalhávamos para arranjarmos dinheiro, para podermos viajar assim que atingíssemos a maioridade. A partir dos 18 anos, ao começarmos a viajar Europa fora, abriram-se novos horizontes. Nos anos 80, jovens portugueses a viajarem para o estrangeiro pelo Inter-Rail era pouco comum. Sentia-me uma aventureira, compelida a ir sempre mais longe, e fi-lo, ano após ano durante quase uma década. 

Acabei o curso, estagiei no estrangeiro, tive a sorte de poder escolher o trabalho que quis, tornei-me independente economicamente, casei, criei família. Aparentemente a minha pessoa estava normalizada, pacificada. E, porém, algo fervilhava constantemente debaixo da pele, qual formigueiro ou zumbido subliminar, que acordava ao menor sinal. 

Ao longo de quase cinco décadas, África tem estado sempre presente no meu quotidiano, nas sensações, nos sonhos e nos pesadelos. A minha origem, o chão das minhas raízes, ainda que arrancadas à força, as minhas referências primevas, manifestam-se constantemente, seja para me alertar ou para me acalmar.

Ainda hoje, espanto-me, sem cessar, como permanece intacta a memória do olfato, do paladar, dos sons, das cores e das texturas. Dos confins da infância sou desperta pelo aroma do café acabado de fazer em cada manhã, pelos sons e as cores intensas dos fins de tarde, pelo cheiro da terra molhada depois de uma chuvada súbita que, tal como começava, acabava; vejo-me a franzir os olhos para tentar ver para além da bruma impenetrável do cacimbo, que envolvia os dias de "inverno" em alguns dos lugares onde morámos, deixando um cheiro a pó de talco a pairar no ar. 

Corro descalça pelo mato no meio de uma brincadeira de índios e cowboys e paro, de súbito, para saborear o gosto amargo-doce das bagas vermelhas do café penduradas nos arbustos; revejo o azul intenso do mar calmo na baía do Lobito, e oiço o estrondo das vagas que batiam nos pontões na Praia Morena, em Benguela, no tempo das "calemas"; sinto, enjoada, o calor húmido, abafado, constante, que se colava à pele e nos fazia transpirar sem parar, por mais banhos que tomássemos.

Não esqueço o aroma de uma Muamba acabada de fazer, nem o sabor irrepetível do pirão de farinha branca, ensopado no molho do guisado de carne, feito no fogareiro a carvão, comido à mão, no páteo das traseiras, ou o sabor doce e guloso dos morangos maduros acabados de apanhar, o molho vermelho a escorrer das mãos que limpava na camisa. Ainda estremeço com o ribombar das trovoadas secas e tapo os olhos ao clarão dos relâmpagos, que, às dezenas, riscam o céu carregado de nuvens negras, prontas a despejarem toneladas de água. Oiço o barulho ensurdecedor das cigarras na savana ao entardecer, e danço, ao som ritmado dos batuques de tambores que anunciavam festas em aldeias distantes. Vejo os pés das roseiras que cresciam na Ganda, onde floriam rosas de pétalas gigantes e acetinadas, com cores fenomenais. 

Antecipo a excitação das festas de Natal do Banco de Angola, onde o meu Pai trabalhava, eufórica pelos presentes que íamos receber e, vejo-me, em pleno palco a recitar, nervosa, o meu primeiro poema de Natal; disparo em correria desenfreada com o meu irmão até à beira-mar, para ver quem chegava primeiro e se atirava para dentro de água e sinto, nas plantas dos pés, os picos das pinhas minúsculas das casuarinas espalhadas pela areia, que nos faziam andar aos saltinhos, na tentativa de as evitarmos. 

África foi o meu berço, corre-me no sangue, aquece-me a alma, estimula a minha imaginação. É o fascínio de viagens marcadas pela imensidão dos espaços e pela diversidade das paisagens; é a fileira das acácias rubras na berma dos passeios, os troncos pintados de branco até meia altura, que quando floriam, atapetavam as ruas de vermelho intenso; é a imagem dos embondeiros, esqueletos retorcidos de árvores sem folhas, resistentes à seca e à solidão da savana, com os sacos de múcua pendentes, os frutos brancos no interior, de sabor ácido e adstringente, que deixavam a língua e o céu da boca encortiçados; são as papaieiras e os mamoeiros esguios, os abacateiros e as mangueiras frondosas de troncos possantes, a que trepávamos para ver quem subia mais alto. 

Ao sábado vinham as mulheres negras com os filhos às costas, seguros por panos coloridos atados ao peito, as quitandas à cabeça, carregadas de gorazes, chernes, garoupas, lagostas, que chegavam de barco vindos da Baía Farta. Iam de casa em casa, com os seus cantares lânguidos, gingando as ancas lentamente, ao ritmo das ondas de calor do final da tarde. A cereja no topo do bolo eram os almoços de domingo, em que a minha Mãe se esmerava a fazer os pratos de que mais gostávamos, como lagosta suada com salada russa ou, o seu inigualável rosbife com batata palha. Para terminar, mimava-nos sempre com um pudim flan ou de ovos, afogado em caramelo!

Voltar a Àfrica? Sim, adorava! Mas a outra África, longe dos lugares da minha infância, porque tenho perfeita noção que voltar a eles seria o "genocídio" destas minhas memórias, a destruição de uma parte da minha identidade, do que fui e me marcou, de quem sou!

Como disse Agostinho da Silva, "...todos transportamos cadáveres de nós próprios...", do que fomos na infância, na adolescência, no início da idade adulta... A esses tempos, que significam outras vidas, é impossível retornar, na pretensão espúria de os querermos reviver tal como da primeira vez. Já só existem dentro de nós. Tentar revisitá-los é, quase, cometer suicídio! 



5 comentários:

  1. Lindo minha amiga. As lágrimas escorrem-me na face com saudades disto tudo. Infância que jamais se esquece.Obg. e Bjs

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  2. Obrigada Meg, estava cá dentro há muito, muito tempo, pronto para sair. Saiu de rompante!

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  3. Este texto é um must ás memórias dos sentidos...
    Este texto é um must a quem deste continente teve como berço.
    Este texto é um must para quem teve a sorte e o prvilégio de ser parte integrante de um habita como Angola de há 40 anos atrás.

    Parabens mana

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  4. Astro ou estrelas, ainda bem que gostaste das nossas memórias comuns, partilhadas a dois e a três, e que jamais esqueceremos. Bjo,

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