domingo, 2 de março de 2014

Flashes de um país raro e cheio de "tesourinhos deprimentes".


"Minha cara amiga, como tens passado? Querias notícias minhas e aqui vão.

Eu, João, profissional de marketing desempregado e actual dono de casa efectivo, deixo-te aqui o meu testemunho de participante numa experiência enriquecedora e inolvidável.

Há cerca de 15 dias iniciei um curso de formação, de caracter obrigatório, proporcionado pelo Centro de Emprego da região. Saí de casa pela fresquinha, sentindo na cara o friozinho cortante daquela manhã de inverno e fui apresentar-me no centro de formação.

Senti-me estranhamente satisfeito por sair de casa à hora a que tantos outros saem para o trabalho, tal como o fiz durante anos. A formação seria a partir dali o meu trabalho, e lá fui entusiasmado apresentar-me: 9 horas, sharp!

Comigo estavam outros 18 convocados(as) com idades variadas, na casa dos 40/60, todos desempregados, tal como eu. Fomo-nos sentando ordeiramente e em silêncio numa sala disposta em U, e quais alunos atinados e obedientes no seu 1º dia de escola, espiávamos desconfiados os parceiros pelo canto do olho enquanto aguardávamos pelo formador.

A receber-nos estava um indivíduo vestido com uma bata branca imaculada, o que me confundiu inicialmente - homem do talho não podia ser, estava demasiado limpo, parecia mais o tipo da farmácia ou até o enfermeiro do Centro de Saúde.

Ao fim de uns minutos e depois de distribuir impressos a cada um, apresentou-se como sendo o formador, que nos acompanharia ao longo de 150 horas, o equivalente a quase dois meses de aulas diárias, das 9h às 14h. De rajada, foi dizendo que o curso tinha como objectivo dotar os formandos de Competências Informáticas Básicas e que…

GELEI AGONIADO! Devia ter ouvido mal, só podia! Eu estava inscrito para um curso de Competências Informáticas Avançadas e produção de sites!!!

O trabalho escraviza...

Em segundos estava instalado o granel, com todos a falarem ao mesmo tempo, num bruuuaaaa ensurdecedor que se agravou quando o enfermeiro, perdão, o formador, caiu na asneira de perguntar: "alguém aqui tem alguma objeção em participar neste curso?" No segundo seguinte o pessoal da pesada arranjou logo motivo para a balda, cada qual mais hilariante que o anterior.

Eu, ainda mal refeito da surpresa, resisti a juntar-me ao coro de protestos, e civicamente abstive-me de qualquer comentário, mas pensei com os meus botões que ou o tipo era parvo de todo ou estava armado ao pingarelho.

Escusado será dizer que fiquei doutorado nos impedimentos de todos os outros, mas o mais interessante foi perceber que iria frequentar, sem apelo nem agravo, um curso para o qual não me inscrevi, e que o homem de bata branca, a quem os meus estimados colegas passaram a tratar por "setor", também não fazia ideia nenhuma porque raio estavam ali pessoas inscritas para um outro curso de formação?! "Amigos, isto é o que tem que ser, tanto para vocês como para mim e podem reclamar junto da entidade competente, mas aconselho-vos a não faltarem ao curso". E, como que para nos acalmar, SORRIU, um sorriso cândido e meigo, irresistível, que me comoveu profundamente!

Explicou então que a balda só era possível com justificação plausível, atestada por entidades competentes e credenciadas, e assim, depois de acenar com a cenoura deu com o pau na tola dos espertos, o desmancha-prazeres!

A formação liberta!

Mais divertido ainda foi observar que o grupo de formandos era composto por gente muito diversa, o que contribuiu para o enriquecimento sócio-cultural do conjunto: uns seis teriam formação média ou superior, outros tantos teriam a 4ª classe ou pouco mais, e os restantes mal sabiam ler e escrever, donde, conseguir que todos preenchessem uma simples folha com os dados pessoais, revelou-se uma tarefa árdua; havia também quem visse mal, como a minha companheira do lado que não imaginava que o seu cartão de cidadão contivesse dados diversos e não apenas o nº do BI, e que para além disso, de tão boazinha tinha emprestado a caneta ao vizinho do lado o que a impedia de preencher efectivamente o impresso, e numa voz maviosa, voltou-se para apelar à minha aparente generosidade: "já agora vizinho, preencha o meu impresso também, porque estou sem caneta, não percebo nada disto e vejo mal..."

Querida amiga, lembrei-me tanto de ti, porque a veia do pescoço inchou, quente de enervamento, espanto e falta de paciência. Pensei "isto não me está a acontecer" e contendo a minha fúria disse-lhe: oiça, eu ajudo-a a preencher o impresso mas será melhor pedir de volta a sua caneta, e talvez pondo os óculos já consiga ler, certo?

Claro que a minha vizinha não me achou graça nenhuma e soltou, num suspiro profundo, a frase que mais me animou: "estamos aqui para sermos uns para os outros e eu não percebo nada disto mas já vi que o menino percebe!" PRONTOS, com esta arrumou comigo, porque a fulana devia ter quase a mesma idade que eu, mas achou que eu tinha ar de menino, e o meu ego exultou de felicidade.

Tudo boa gente.

Escusado será dizer que obviamente havia vários indivíduos para quem a vida é madrasta, entre os quais um desgraçado que vive com 180 euros mensais de apoio social, 60 anos ou mais, coxo mas sem papas na língua, que tirou partido da verve e da lata de "pintas marialva" e monopolizou a cena de princípio ao fim, contando a sua história desde tenra infância até aos dias de hoje, sempre com apartes e sempre na 1ª pessoa - Eu isto, eu aquilo, e isto é uma grande porcaria. "Tou inscrito há canos e agora que não me dá jeitinho nenhum, chamam-me para aprender coisas que não me servem para nada. Sim, tenho portátel mas não funciona e vou trazê-lo para o setôr ver que raio o bicho tem..." Pérolas, verdadeiras pérolas!

Os despojos do dia...

Portanto, absorvo diariamente ensinamentos vários com o objectivo de me formar sobre uma matéria para a qual não tenho o mínimo interesse porque domino, e partilho com os meus colegas da vida airada experiências preciosas, que tal como eles, não percebo "para que raio me servem". Hilariante!

No fim desta sessão de apresentação não pude evitar sentir-me um privilegiado em todos os aspectos. Faço parte de uma pequena elite de uns milhares, cujos pais nos deram a chance de irmos mais longe: estudámos, viajámos, trabalhámos em empresas e participámos em projectos que nos proporcionaram experiências diversas, alargando-nos os horizontes.

Senti que vivo num mundo aparte do qual a maioria deste país ficou à margem, foi excluída pela falácia da igualdade de oportunidades e pela ilusão do acesso fácil ao conforto e ao sucesso. A quimera terminou para quase todos, mas esta maioria da qual "sou vizinha" continuará a estar e a ser excluída, nas próximas décadas, do acesso a esse conforto, a esse sucesso e ao saber, a que têm tanto direito como os outros. A diferença é que, apesar do confronto diário com essa realidade abrupta, os seus protestos de nada lhes servem, tal como de pouco nos serve o curso de formação, inútil porque desajustado, mas que iremos concluir com sucesso e louvor, exibindo orgulhosos o respectivo certificado, que atestará, sobretudo, a nossa infinitamente estúpida capacidade de aceitação de tudo o que não nos interessa.

À saída, eu, João, profissional de marketing desempregado, olhei à minha volta e engoli o enjôo: de nada me servira o saber e experiência acumulados porque era tão náufrago quanto os outros, e estava igualmente ávido de uma tábua de salvação a que me agarrar com unhas e dentes, na esperança de ainda poder safar-me e chegar a bom porto.

Fechei os olhos por segundos e imaginei-me noutro lugar, tentando esquecer a profunda tristeza que me invadira ao deparar-me com este "tesourinho deprimente", um pequenino retrato do pobre país que somos após 40 anos de democracia, pelo qual TODOS SOMOS RESPONSAVEIS.

Quanto ao curso, tenho ainda a esperança de poder aprender alguma coisa, seja o que for.

Haja saúde.

Até breve."

2 comentários:

  1. Adorei!!... Trata-se de um tema grave e muito sério que a autora teve a sabedoria de tratar de forma simples e profundamente ligeira, sabendo sempre respeitar os sentimentos das pessoas que se veem confrontadas com a dor e as dificuldades do desemprego.
    Parabéns. Texto colorido de uma realidade cinzenta escura. Muito bom!

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  2. Esta situação passa-se porque Portugal tornou-se um país modernaço! Um país todo virado para as novas tecnologias! Veja-se a Websumit! Milhares e milhares de geeks todos reunidos para conferenciarem entre si, lançarem novas StarUps! Mas depois esquecem-se que há muitas pessoas que não sabem lidar com computadores!

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