segunda-feira, 6 de maio de 2013

Uma estrela dourada brilha no firmamento


A minha Mãe, Mazy Sacramento Monteiro

 Desde miúda sempre me fascinou observar o céu nocturno e apreciar o brilho dos milhões de estrelas por cima de nós. Com o passar dos anos, esse gesto tornou-se quase compulsivo,  sobretudo em sítios onde a luz artificial está ausente, permitindo que o espectáculo desses seres quase eternos se manifeste em toda a sua grandeza. 

Nos últimos 20 anos, porém, sair de casa para olhar o céu estrelado tornou-se, progressivamente, num ritual absolutamente interior e solitário. Num cantinho da Serra de Grândola, lugar rude e simples que aprendi a amar, afasto-me dos outros e procuro um sítio onde possa ficar a contemplá-las em sossego. 

Algures, lá em cima no firmamento, brilham estrelas a que chamo minhas, seres especiais que me amaram e que amei, que um dia partiram sem que jamais os possa esquecer. Os meus olhos vasculham assim a imensidão prateada e negra, fixando-se num pequeno conjunto de pontos brilhantes que tremulam como pequenos flashes, de onde sobressai uma, cujo brilho dourado se destaca das outras, ofuscando-as. Por uma fracção de segundo vejo um tremor ritmado, como que um piscar de olhos, e o meu coração aperta-se cá dentro, preso daquele ténue sinal de reconhecimento. Devolvo o piscar de olhos à minha estrela maior, e dedico-lhe o meu sorriso carinhoso.

Em jovem, a minha estrela não era o que se pode dizer uma mulher bonita, mas estivesse onde estivesse, era impossível não dar pela sua presença. Conversadora nata, sabia estar com todos, adaptando na perfeição o tema da conversa aos ouvintes e à ocasião. Alegre, senhora de um sentido de humor subtil, adorava uma "piada picante" da qual se ria com gosto, e, muitas vezes, ria-se mesmo de si própria, já que era dada a distrações e a pequenos lapsos, como o de trocar frequentemente o nome de algumas pessoas, mas tinha a arte de se sair sempre bem das situações, conquistando os atingidos com tiradas simpáticas e espontâneas, que tinham o condão de os desarmar.   

A minha estrela tinha cabelo negro ondulado, "rebelde e teimoso" segundo a própria, olhos castanhos brilhantes e expressivos, boca de lábios cheios bem desenhados, que o baton vermelho destacava. Sendo mais alta do que a média das mulheres com quem se dava - a mim parecia-me sempre altíssima, ainda por cima porque usava saltos altos - tinha uma fisionomia elegante com "cinturinha de vespa" de que sabia tirar partido, vestindo peças simples mas com feitios e cores que a favoreciam, "porque tinha bom gosto".

Gostava de festas que se prolongassem pela noite fora e como boa dançarina, fazia o gosto ao pézinho e ficava feliz quando o acompanhante não tinha "pé de chumbo", como o meu Pai. Era-lhe fácil fazer amigos, mas era fiel a um "grupo duro" com quem se dava quase diariamente desde há longos anos, e com quem nunca a ouvi ter qualquer dissonância, apesar de os seus membros terem idades muito diversificadas. Os locais desse convívio intenso eram as casas uns dos outros e não era preciso ocasião especial para se encontrarem, já que havia o hábito de tomar um "drink" ao final da tarde, depois do trabalho, de sair após o jantar para tomar café e de promoverem jantares aos sábados. 

A minha estrela tinha mão para a cozinha mas era ainda melhor doceira. Fazia de tudo, desde um simples pudim de chocolate, à divina tarte de amêndoa e ovos moles, ao bolo de ananás caramelizado, fora o que inventava em cima da hora, quando as receitas não lhe saiam como queria, socorrendo-se de "pequenos truques" que começavam por disfarçar o desastre e acabavam, geralmente, por serem apresentados como "especialidades do Algarve", isto ainda antes de choverem os elogios àquela delícia! 

Eu e os meus irmãos crescemos a ouvir falar em "Charlotes, Chifons, Rocamboles, Sorvetes, Marquises e Bavaroises", divertindo-nos com os nomes "chiques" de receitas do Pantagruel e da Banquete, da Tia Anita e da Avó Esther. Sempre que havia bolo pedíamos que nos chamasse para rapar a taça, e de colheres em punho, subíamos para cima de bancos para controlarmos a quantidade de massa que sobrava, sobretudo no Bolo Mármore, nosso favorito, porque íamos comendo, à vez, um pedacinho de massa branca e outro de massa de chocolate, acabando, sempre, com a cara, o cabelo e camisola todos sujos. 

Esta minha estrela brilhante tinha a pele branca e macia, mãos lindas com longos dedos de pianista, as unhas bem tratadas e sempre impecáveis, pintadas de laranja forte ou vermelho. Nos dias de festa, andava atrás dela enquanto se vestia, se maquilhava e penteava, suspensa dos seus gestos descontraídos e da alegria que dela emanava. Pedia-me para lhe pôr o colar, e fosse ele qual fosse, "ficava-lhe sempre a matar". Aos meus olhos de criança, parecia-me sempre uma raínha, pronta a entrar em cena pela mão do seu rei. 

A minha estrela maior cativava os outros com a sua simplicidade e franqueza, sem poses estudadas e sem gestos teatrais, desarmando tudo e todos com a sua gargalhada cristalina, uma das marcas imorredoiras da sua personalidade vibrante. Saber rir com gosto era-lhe intrínseco, e o som dessa gargalhada fazia parte integrante do seu charme inesquecível.

Depois a vida mudou, e encarregou-se de lhe esmorecer a força, a energia e a alegria, fruto das perdas sucessivas que viveu. De degrau em degrau faltaram-lhe as âncoras, e desceu aos infernos: primeiro a saída definitiva da terra amada, depois a morte do Pai, seu companheiro de sempre, e numa reviravolta insuspeitável do destino, sofreu o derradeiro golpe, o choque brutal, súbito e irreparável da morte do filho mais novo, com 24 anos.

Até pouco antes do fim permaneceu estoica, sempre generosa para com os outros, esquecendo-se de si própria apesar do sofrimento físico e moral, porque na sua lógica, havia sempre alguém que sofria mais, que precisava de amparo e de uma palavra de esperança, quando para ela, toda a esperança já se fora. 

A generosidade era a faceta intrínseca e inata da minha estrela maior, essa propriedade de carácter que a tornava "luminosa" e que a fez ser admirada por familiares, amigos e colegas, criando laços que perduraram vida fora, e que ainda hoje se mantêm vivos na memória e no coração de quem teve a sorte de a conhecer.

Esta estrela brilhante que ofusca as outras é a minha Mãe. Tento seguir no encalço dos seus passos, reproduzir os seus ensinamentos, guiar-me pela sua luz, mas nunca imitá-la porque o que é genuíno não se copia.

Obrigada por tudo, minha estrela brilhante mas, sobretudo, pelo privilégio que me foi concedido por ter-te tido como Mãe.
 

6 comentários:

  1. Sem palavras mana, apenas lágrimas interiores.

    Obrigado

    Sérgio Geraldes

    ResponderEliminar
  2. Esteja a nossa estrela dourada onde estiver, olha por nós na companhia da nossa outra estrela prateada. Bjo

    ResponderEliminar
  3. Adorei. Fizeste um magnifico retrato da tua Mãe. Obrigada.
    Um grande beijo.

    ResponderEliminar
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  5. Que belo texto! Faltam-me palavras para expressar o quão gostei de o ler! Anjo da guarda!

    ResponderEliminar